No mês passado, o Uruguai deu um passo decisivo para a ratificação de uma parceria militar com a China para em seguida paralisar as discussões, uma hesitação que reflete as tensões da chamada Guerra Fria 2.0.
A proposta de acordo militar surgiu de um termo assinado entre os dois países em 2019, durante o governo do presidente esquerdista Tabaré Vázquez. Um projeto de lei para ratificar o compromisso foi enviado ao parlamento uruguaio pelo Executivo em fevereiro deste ano.
Em junho, o acordo foi aprovado por unanimidade na Comissão de Relações Internacionais do Senado e se esperava também uma aprovação fácil no plenário, mas a própria bancada que apoia o presidente de centro-direita Luis Lacalle Pou pediu a retirada do projeto de lei.
A justificativa era que a proposta deveria voltar à Comissão de Relações Internacionais, para que ministros do governo uruguaio detalhem melhor os termos do acordo.
O texto aprovado pela comissão e retirado logo depois prevê uma cooperação em defesa que incluirá “visitas mútuas de delegações de alto nível”, intercâmbio de alunos e instrutores de instituições militares, transferência de material bélico, treinamentos conjuntos, além de “coordenação de operações internacionais de manutenção da paz”, cooperação em ciência, tecnologia e equipamentos militares e no combate ao terrorismo.
Quando o projeto de lei sobre o acordo militar foi retirado de pauta, o coordenador da bancada do Partido Nacional (legenda de Lacalle Pou), Gustavo Penadés, alegou ao jornal El Observador que os ministros da Defesa e das Relações Exteriores não participaram da discussão que resultou na aprovação do acordo na comissão do Senado.
“Tudo em que votei, fiz ouvindo primeiro os envolvidos. É natural ouvir quem tem responsabilidade direta”, acrescentou Penadés.
Já Daniel Caggiani, senador da Frente Ampla, partido de Tabaré Vázquez (este falecido em 2020), e integrante da Comissão de Relações Internacionais, disse ao jornal La Diaria que a retirada do projeto foi influenciada por “alguns atores” com uma “visão bastante contrária a que a China tenha maiores níveis de aproximação com a região”.
Especula-se que a decisão de debater melhor o acordo surgiu devido a manifestações de preocupação por parte do governo dos Estados Unidos, expressadas durante a Cúpula das Américas, realizada em Los Angeles no início de junho.
Acordo de livre-comércio
Os americanos criticaram ainda um tratado de livre-comércio que vem sendo negociado por China e Uruguai, alvo de críticas também da Argentina, que entende que essa parceria desrespeitaria os regulamentos do Mercosul.
Em abril, o presidente da Câmara dos Representantes do Uruguai, Ope Pasquet, do partido centrista Colorado, já havia alertado que o acordo de livre-comércio que vem sendo negociado com a China precisava ser reconsiderado devido à guerra da Ucrânia.
A China é a principal parceira geopolítica da Rússia e, embora não esteja ajudando Moscou militarmente, vem criticando as sanções impostas pelo Ocidente ao país governado por Vladimir Putin. Antes da guerra, chineses e russos apontaram que sua parceria “não tem limites”.
“É evidente que, neste novo cenário internacional, um tratado de livre-comércio entre Uruguai e China não significaria o mesmo que significaria um ou dois anos atrás”, declarou Pasquet.
Além da crescente influência econômica da China na região, os Estados Unidos temem que Pequim aumente sua presença militar na América Latina, como já vem fazendo no Indo-Pacífico e na África.
Além dos laços com as ditaduras de esquerda da região, Cuba, Venezuela e Nicarágua, em 2015 a China implantou uma estação espacial na província argentina de Neuquén, estrutura que Washington suspeita que tenha objetivos militares.
Em declaração feita em março ao Comitê de Relações Exteriores do Senado americano, Evan Ellis, pesquisador do Programa das Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), apontou que os governos de esquerda são os principais compradores de armas chinesas na região e alertou que qualquer aproximação de Pequim com chefes de Estado latino-americanos precisa ser observada.
“O resultado coletivo do apoio econômico, militar e técnico aos amigos autoritários populistas da China [na região] foi, sem dúvida, a sobrevivência prolongada de seus regimes. Nesse processo, a China contribuiu para um hemisfério com menos governos democráticos, cada vez menos dispostos a cooperar com os Estados Unidos em questões importantes para nossa segurança, do crime organizado transnacional à migração, corrupção e direitos humanos”, destacou Ellis.
Embora não tenha citado a possibilidade de uma parceria militar entre chineses e uruguaios, o analista argumentou que os americanos precisam direcionar recursos e esforços para a região, já que o alinhamento da China à Rússia no momento em que esta promove uma invasão a um país vizinho “cria uma oportunidade para os Estados Unidos lembrarem ao mundo que democracia, direitos humanos e compromissos legais devem significar alguma coisa, para que a ordem institucional global que trouxe a segurança e prosperidade atuais permaneça viável”.
Para Daniel Runde, também membro do CSIS, a China está pronta “para atender às necessidades de muitos países [na América Latina]: conectividade digital, fornecimento de vacinas, comércio e – possivelmente – segurança”.
“Se os Estados Unidos não encontrarem melhores maneiras de se envolver com a região, mesmo com economias pequenas, mas vibrantes, como o Uruguai, a China preencherá essa lacuna”, argumentou, em artigo publicado no site do jornal The Hill.
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