A China iniciou um processo para forçar Hong Kong a adotar leis de segurança nacional sem ter que lidar com a oposição local, muito menos ouvir a população. Vista pela perspectiva chinesa, a medida é importante para barrar a interferência estrangeira e impedir movimentos separatistas na cidade semi-autônoma. Por outro lado, elas prometem diminuir a autonomia da ilha, consequentemente tolhendo a liberdade de expressão e de imprensa e abrindo espaço para abusos de poder por parte das autoridades pró-Pequim.
Ao contrário de Macau, que também é uma região especial autônoma da China, Hong Kong, desde que foi entregue pelos britânicos aos chineses, nunca aprovou as leis de segurança nacional previstas em sua miniconstituição. O Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong estabelece que o governo local deve promulgar sua própria lei de segurança nacional para proibir atos de "traição, secessão, sedição, subversão contra o governo popular central ou roubo de segredos de estado… e proibir organizações ou órgãos políticos da região de estabelecer laços com organizações ou órgãos políticos estrangeiros". Hong Kong, porém, nunca fez isso porque o assunto sempre foi delicado. Houve uma tentativa de aprovar as leis em 2003, mas o trâmite foi interrompido após grandes protestos. Os manifestantes advertiram que elas restringiriam seus direitos e liberdades.
Mas a preocupação de Pequim pela ausência das leis de segurança começou a aumentar com a deflagração de protestos pró-democracia no ano passado. Um movimento pró-independência com o auxílio dos Estados Unidos poderia estar em curso, alegavam as autoridades chinesas.
Vendo que a chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam (pró-Pequim), não conseguiria avançar com as propostas de lei para a segurança nacional, o Partido Comunista da China resolveu tomar as rédeas da situação. Lam, que fracassou com o projeto de lei que permitiria a extradição de honcongueses à China, defendia que as legislações pertinentes ao Artigo 23 da miniconstituição só poderiam ser aprovadas quando houvesse um ambiente político favorável para isso. Mas aparentemente Pequim chegou à conclusão de que o legislativo local não seria capaz de aprová-las tão cedo, ainda mais com a possibilidade de que a oposição aumente sua participação na Casa após as eleições parlamentares de Hong Kong, que ocorrerão em setembro.
Diante desse cenário, o governo do presidente Xi Jinping colocou em prática uma manobra que lhe permitirá resolver a questão da segurança nacional em Hong Kong sem ter que lidar com os políticos locais ou ficar à mercê de protestos.
Nos próximos dias, o Congresso Nacional do Povo (CNP), o legislativo chinês, vai deliberar - e certamente aprovar - uma resolução que autorizará o Comitê Permanente do CNP a criar "leis relevantes para estabelecer um sistema legal sólido e um mecanismo de execução para salvaguardar a segurança nacional em Hong Kong", segundo reportou o South China Morning Post, que teve acesso ao documento.
A resolução deve ser aprovada na semana que vem e o Comitê Permanente vai desenhar a lei que, de acordo com o texto da resolução,"impediria, frustraria e puniria qualquer atividade secessionista ou subversiva, a organização de atos terroristas e outros atos que ameaçam seriamente a segurança nacional, bem como atividades de interferência externa em Hong Kong".
Esta lei, depois de aprovada pelo comitê, vai passar a constar no Anexo III da Lei Básica de Hong Kong. O Artigo 18 da miniconstituição diz que as leis nacionais da China só podem ser aplicadas em Hong Kong se estiverem listadas no Anexo III e se estiverem relacionadas à defesa, assuntos externos e "outros assuntos fora dos limites" da autonomia da cidade.
Fontes do governo chinês disseram ao Post que, depois disso, a lei será introduzida em Hong Kong por meio de promulgação, sem a necessidade de legislação local. Não está claro quanto tempo esse processo de tramitação levará. O Comitê Permanente do CNP deve se reunir em junho.
Mas, de acordo com a resolução, a administração de Hong Kong ainda precisará fazer a sua própria legislação de segurança nacional, respeitando o Artigo 23 da miniconstituição. A legislação, porém, não poderá contradizer a versão que está sendo elaborada por Pequim.
Como a lei será fiscalizada ainda está por ser visto. O governo central planeja permitir que agências de segurança da China continental operem oficialmente em Hong Kong, segundo afirmou Wang Chen, diretor-geral do Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo.
Nesta quinta-feira (21), durante a abertura da sessão anual do Congresso Nacional do Povo (CNP), Wang Chen disse que a justificativa para a deliberação sobre a resolução era que Pequim não permitiria que Hong Kong se transformasse em uma "base de infiltração".
"Prevenir, frustrar e punir a pequena minoria de atos criminosos que prejudicam a segurança nacional é oferecer melhor proteção à segurança da vida e propriedade da grande maioria do povo de Hong Kong, bem como de seus direitos e liberdades básicos", disse Wang, acrescentando também que a lei de segurança ajudaria a China a implementar o princípio "um país, dois sistemas".
Como reagiu a oposição
O líder do Partido Democrata de Hong Kong, Wu Chi-wai, pensa o oposto. Ao saber da jogada ousada do governo central chinês, disse que a introdução direta da lei de segurança nacional seria o anúncio da morte do princípio "um país, dois sistemas".
Outros líderes da oposição em Hong Kong falaram contra a medida de Pequim. "O governo chinês não pode esperar e realmente não suporta as liberdades e direitos que temos em Hong Kong, então eles tentam retirá-los o mais rápido possível", disse Tanya Chan, legisladora do Partido Cívico e líder da oposição.
"Os braços da tirania chegaram a Hong Kong", disse Ted Hui, um parlamentar pró-democracia que participava regularmente de protestos no ano passado. "Dias mais sombrios estão chegando".
Na internet, honcongueses se mostram divididos entre o medo de retaliação e a vontade de sair para as ruas para protestar. Embora o governo local tenha proibido aglomerações por causa da pandemia de coronavírus, alguns protestos já foram realizados e amplamente sufocados pelas forças policiais de Hong Kong. A oposição deve estimular manifestações em massa a partir de agora, que tendem a ser confrontadas com violência estatal.
Quais as consequências para Hong Kong
Carrie Lam está apoiando as ações de Pequim e defendeu que a nova lei "não afetará os vários direitos e liberdades que as pessoas de Hong Kong desfrutam nos termos da lei, nem afetará o judiciário no exercício de seu poder independente e do poder de adjudicação final".
Mas há quem discorde dela. O democrata veterano Lee Cheuk-yan disse que existe a possibilidade de que crimes como a subversão possam ser usados arbitrariamente contra ativistas. Ao South China Morning Post, ele disse que é prática de Pequim usar as leis de segurança nacional para reprimir dissidentes na China continental, citando o caso do falecido ganhador do Prêmio Nobel da Paz Liu Xiaobo, que foi condenado a 11 anos de prisão em 2009 por incitar a subversão.
Em um artigo, jornalistas do New York Times notaram que, mesmo que as novas leis de segurança não levem necessariamente ao fechamento de jornais ou emissoras anti-Pequim, a autocensura ou até a relutância em se manifestar são prováveis de acontecer.
Analistas em política internacional afirmam que esta é a mensagem mais clara até hoje de que o Partido Comunista está trabalhando para minar a autonomia de Hong Kong.
"Pequim optou pela rota mais arriscada", disse Ho-Fung Hung, professor de relações internacionais da Universidade Johns Hopkins, ao Washington Post. "Isso mostrará ao mundo que [o princípio] 'um país, dois sistemas', se ainda não acabou, está quase acabando". Ele acrescentou: "Será muito difícil para qualquer pessoa, especialmente os Estados Unidos, dizer que Hong Kong ainda é [uma cidade] autônoma".
Para Johnny Patterson, diretor da organização não governamental Hong Kong Watch, a decisão de Pequim de contornar o legislativo de Hong Kong para promulgar a lei de segurança é uma "intervenção sem precedentes e altamente controversa".
"É claro que todos os países têm o dever de proteger sua própria segurança nacional, mas não à custa dos direitos e liberdades fundamentais", disse em comunicado.
"As implicações dessa legislação são potencialmente profundas. As ONGs e instituições de caridade como a Anistia Internacional e a Hong Kong Watch se tornarão ilegais? (...) A oposição política será acusada de subversão? Uma interpretação abrangente dessa lei sinalizaria o fim de Hong Kong como a conhecemos".
Como a comunidade internacional está reagindo
Por enquanto a reação está só nas palavras. O Conselho Europeu, órgão máximo da União Europeia, pediu "respeito" à autonomia de Hong Kong e disse que vai monitorar de perto a evolução do caso. "A União Europeia tem forte participação na estabilidade e na prosperidade contínuas de Hong Kong, sob o princípio ‘um país, dois sistemas’, e dá grande importância à preservação do alto grau de autonomia do território", diz a nota do bloco publicada nesta sexta-feira (22). Para o Conselho Europeu, as partes deveriam dialogar, por meio do "debate democrático", de forma a chegar a um consenso sobre a questão.
Ministros das Relações Exteriores do Reino Unido, Austrália e Canadá emitiram uma declaração conjunta. "Estamos profundamente preocupados com as propostas de introdução de legislação relacionada à segurança nacional em Hong Kong", disseram. "A criação de uma lei em nome de Hong Kong sem a participação direta de seu povo, legislativo ou judiciário minaria claramente o princípio de 'um país, dois sistemas', sob o qual Hong Kong tem garantido um alto grau de autonomia".
Os Estados Unidos adotaram uma postura mais rígida. O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, publicou uma nota condenando a proposta do CNP e dizendo que a decisão representaria "um sinistro para o alto grau de autonomia que Pequim prometeu para Hong Kong sob a Declaração Conjunta Sino-Britânica, um acordo arquivado pela ONU".
"Hong Kong floresceu como bastião da liberdade. Os Estados Unidos exortam fortemente Pequim a reconsiderar sua proposta desastrosa, cumprir suas obrigações internacionais e respeitar o alto grau de autonomia de Hong Kong, instituições democráticas e liberdades civis, que são essenciais para preservar seu status especial sob a lei americana", declarou Pompeo.
"Qualquer decisão que colida com a autonomia e as liberdades de Hong Kong, garantida pela Declaração Conjunta Sino-Britânica e pela Lei Básica, inevitavelmente afetará nossa avaliação d[o princípio] ‘um país, dois sistemas’ e o status do território".
Pompeo se referia à recente lei americana sobre Direitos Humanos e Democracia de Hong Kong, que diz que o Departamento de Estado dos EUA deve certificar regularmente que Hong Kong recebe autonomia suficiente de Pequim para garantir seu tratamento especial sob a Lei de Política de Hong Kong, de 1992, que trata as relações dos EUA com Hong Kong de forma separada da China. Jude Blanchette, diretor do projeto Reconectando a Ásia, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), um think tank baseado em Washington), explicou que, por meio dessa lei de 1992, Hong Kong está excluída da guerra tarifária entre EUA e China, por exemplo.
Os EUA devem certificar - ou não - a autonomia de Hong Kong até o fim do mês.
"Se o Departamento de Estado não atestar que [Hong Kong] possui esse nível de autonomia necessário, poderemos revogar o status exclusivo de Hong Kong", uma opção mais extrema, afirmou o analista americano. Outras vias menos "explosivas" para a relação com a China poderiam ser adotadas, mas, segundo ele, é "provável" que os EUA comecem a tratar Hong Kong como trata a China continental. Isso pode vir a ser mais um ponto de atrito na já complicada relação de Pequim e Washington.