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O presidente da Argentina, Alberto Fernández| Foto: Divulgação/ESTEBAN COLLAZO/Presidência Argentina / AFP

Há exato um ano, Alberto Fernández assumia a presidência da Argentina, devolvendo aos kirchneristas o poder Executivo depois de quatro anos da gestão de Maurício Macri. Obviamente, o primeiro ano de governo de Fernández e de sua vice, Cristina Kirchner, foi marcado pela pandemia e “a quarentena mais longa do mundo”, assim como seus efeitos econômicos. Mas o que aconteceu em 2020 também serviu para revelar um pouco da dinâmica de poder entre o presidente e sua poderosa vice e para confirmar o que já se imaginava sobre o principal objetivo de Kirchner no governo.

Pandemia

Na resposta ao novo coronavírus, a Argentina esteve entre os países que adotaram uma das quarentenas mais restritivas do mundo. Após a confirmação dos primeiros casos de Covid-19 no país, Fernández decretou, em 20 de março, uma quarentena nacional, proibindo os argentinos de sair de casa. A medida foi sendo afrouxada a partir do fim de abril, mas as restrições de circulação se mantiveram bastante rígidas na capital do país por mais alguns meses.

Na época, o presidente Alberto Fernández gostava de fazer comparações com os demais países da região para mostrar como o seu governo estava se destacando positivamente no combate ao vírus pouco conhecido. “Se olharmos como a Argentina evolui, continuamos a perceber, em relação ao que está acontecendo com o resto do continente, que o país tem uma situação bastante controlada”, disse em maio, quando a Argentina tinha menos de 10 mil casos e cerca de 7 mortes por milhão de habitantes, enquanto que no Brasil esta taxa era oito vezes maior.

Em outubro, contudo, a Argentina já tinha mais óbitos por milhão de habitantes do que Brasil, do que a Suécia – outro país indiretamente criticado por Fernández – e atualmente, na América, só tem uma taxa menor do que a do Peru, segundo o site Our World In Data. O principal erro? Faltou um plano além do confinamento, de acordo com cientistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo.

A testagem em massa para identificar e isolar os doentes não ocorreu na Argentina, assim como em nenhum país da América Latina, indica o professor da Universidade de São Paulo e comentarista de política internacional, Vinícius Vieira.

Ao apostar apenas na quarentena, Fernández acabou cansando a população. Isso acabou tendo graves efeitos na economia, já em recessão, e consequentemente no caixa do Estado. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, o PIB argentino retraiu 20% no primeiro semestre de 2020.

Economia

Algumas medidas de alívio para a população foram colocadas em vigor durante o confinamento, como a ajuda financeira a famílias mais pobres e o auxílio a setores da economia mais atingidos pela crise. Mas o que chamou a atenção foram as medidas de caráter populista adotadas por Fernández: ele proibiu demissões, controlou preços de medicamentos e impôs restrições à exportação de suprimentos e equipamentos médicos.

O kirchnerismo também conseguiu apoio suficiente no Congresso para aprovar, na semana passada, um “imposto sobre a riqueza”, que na realidade é uma contribuição única a ser paga por argentinos que têm um patrimônio maior do que 200 milhões de pesos. O objetivo, segundo Máximo Kirchner, filho de Cristina Kirchner e um dos autores da lei, é arrecadar mais dinheiro para que o governo consiga combater a pandemia. Contudo, 25% do valor arrecadado - segundo estimativas do governo, 300 bilhões de pesos - será destinado à estatal de gás natural YPF. De acordo com a oposição e especialistas da área tributária, o novo imposto deve gerar uma onda de questionamentos na justiça, por se tratar de uma bitributação, e, ainda, prejudicar os investimentos no país.

A lei que ainda não entrou em vigor pode até ajudar o caixa do país, mas o governo de Fernández carece de um plano abrangente de recuperação econômica para o pós-pandemia. Como lembrou o professor argentino Andrés Malamud, pesquisador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em entrevista à Gazeta do Povo, o próprio Fernández disse, em entrevista para o Financial Times, que não gostava de planos. “Os seus ministros de economia e produção têm, respetivamente, um plano de negociação da dívida e um plano de promoção da produção, mas são apenas objetivos gerais”, avaliou Malamud.

Notadamente, Fernández conquistou uma vitória em seu primeiro ano de governo, que merece ser creditada ao seu ministro da Economia, Martín Guzmán, discípulo do economista americano Joseph Stiglitz. Em agosto, ele conseguiu evitar um calote ao fechar um acordo de reestruturação da dívida argentina de US$ 66 bilhões com credores estrangeiros. As negociações para reestruturação da dívida com o FMI começaram em novembro e o cenário parece promissor. Contudo, a instabilidade econômica e a crise sanitária acabaram desgastando essas vitórias rapidamente.

Na área econômica ainda houve outro fato importante: a tentativa de expropriação da Vicentin, uma das maiores empresas do setor agropecuário da Argentina e a maior doadora da campanha do ex-presidente Maurício Macri nas eleições de 2019. A medida ocorreu em junho e na época Fernández alegava que a intervenção “resgataria” a empresa visando "defender seus 2.600 trabalhadores" e "garantir a soberania alimentar" do país.

O plano não avançou, mas, junto com medidas de restrição de compra de dólares e de transferências para o exterior, a tentativa acabou sendo mais um desincentivo para investimentos na Argentina, além da crise agravada pela pandemia. Várias multinacionais anunciaram que deixaram o país ou estão se organizando para diminuir suas operações na Argentina.

Política externa

O acolhimento do ex-presidente boliviano Evo Morales na Argentina, ainda em dezembro do ano passado, foi o primeiro indicativo de uma mudança na política externa argentina após os quatro anos de Macri. Depois vieram os desentendimentos com o presidente Jair Bolsonaro e o não reconhecimento de Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela. Contudo, na avaliação de Vieira, apesar do passo para esquerda, Fernández se mostrou bastante pragmático nas relações internacionais, o que possibilitou inclusive a primeira reunião bilateral com Bolsonaro no início deste mês, após um ano de hostilidades.

Relação com Cristina Kirchner

O primeiro ano do governo também revelou algo sobre a dinâmica da relação entre o presidente e sua vice, Cristina Kirchner. Ao contrário do que se poderia imaginar ou especular há um ano atrás, Fernández não tem sido uma mera marionete, controlada totalmente por Kirchner. Ele divide o poder com a vice. Enquanto o presidente – evitando insubordinações à Cristina – detém uma certa autonomia para decidir sobre questões relacionadas à economia e às relações exteriores, a vice está totalmente focada na pauta judicial.

“Cristina só manda na agenda estreita que lhe diz respeito: reforma judicial e promoção política dos seus seguidores. O resto - economia, política social, política externa - é responsabilidade do presidente, que não tem brilhado”, avaliou Malamud.

Essa divisão resulta em duas facções dentro da Casa Rosada: os “albertistas” e os kirchneristas. Segundo Malamud, isso prejudica Fernández especialmente pelo fato de a ala “albertista” ser politicamente fraca e tecnicamente ineficiente.

Para Kirchner, porém, o que realmente importa é provar que ela e sua família foram vítimas de perseguição judicial, nem que para isso tenha que mudar regras e avançar sobre a justiça do país.

Essa obsessão resultou na proposta de reforma judicial do governo, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados; na remoção de três juízes federais que julgaram processos nos quais Kirchner e seus ex-funcionários eram réus - que posteriormente foi revertida pelo Supremo argentino; e as tentativas de afastar o procurador-geral do país, Eduardo Casal, mais recentemente por meio de uma reforma do Ministério Público.

Na avaliação de Malamud, após um ano da volta do kirchnerismo ao poder, a maior vitória de Cristina é estar livre e a maior derrota é ainda não ter conseguido fechar os processos judiciais nos quais está envolvida.

Alberto Fernández, por sua vez, encerra o primeiro ano de presidência visto internacionalmente como um presidente errático e sem planos e com a popularidade em baixa entre os argentinos.

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