Em setembro do ano passado, autoridades encontraram um corpo dilacerado enterrado e um parque regional de Maryland, na Costa Leste dos Estados Unidos. A vítima, não identificada, havia sido esfaqueada cem vezes, decapitada e, ao fim, teve seu coração arrancado. Um ano antes, em Long Island, no estado de Nova York, duas adolescentes haviam sido mortas brutalmente a machadadas e golpes de tacos de beisebol. Nos dois casos, os investigadores chegaram à mesma conclusão: os responsáveis tinham conexão com a “Mara Salvatrucha”, a MS-13, a gangue que se converteu na prioridade máxima de Donald Trump quando associa a imigração ilegal à criminalidade no país.
Com quase quarenta anos de atividade, a MS-13 tem uma longa trajetória de crimes nos Estados Unidos, quase sempre com requintes de crueldade envolvidos na execução. Além dos homicídios de membros de gangues rivais ou de cidadãos que cruzem o seu caminho, a Mara já foi ligada ao narcotráfico, à prostituição infantil, ao tráfico de pessoas e a uma série de outras atividades criminosas, dentro e fora dos EUA. O governo estima que quase US$ 100 milhões passem pelas mãos das diferentes “filiais” da Mara a cada ano.
Não é a primeira vez que a Mara Salvatrucha ganha as manchetes no país. Desde os anos 80, seus crimes têm se destacado frente aos de outras gangues pela violência excessiva, e nos anos 90 muitos de seus membros começaram a ser deportados do país. Ainda assim, a MS-13 se manteve em pé – de fato, aproveitou-se da expulsão de seus membros para países da América Central como forma de expandir as atividades. Sob Donald Trump, a organização ganhou novos holofotes, convertendo-se no principal alvo de muitas campanhas de segurança pública e exemplo do que uma falta de controle sobre a imigração poderia causar no país. Mas, afinal, o que está por trás desse fenômeno?
Inimigo número um de Trump
A crescente escalada nos crimes da MS-13 caiu como uma luva na retórica anti-imigração do governo Trump, que alega que um mais rígido controle das fronteiras evitaria a entrada de criminosos associados ao grupo. Convertidas em inimigos públicos número um do presidente, as Maras têm sido alvo de grandes investigações federais, deportações massivas e ásperas declarações oficiais vindas da Presidência.
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Em maio, a página oficial da Casa Branca divulgou uma nota intitulada “O que você precisa saber sobre os violentos animais da MS-13”, descrevendo algumas das ações violentas do grupo e a resposta do governo para combatê-los. Segundo o documento, “investigações recentes revelaram que os líderes da MS-13 em El Salvador têm enviado representantes ilegalmente para conectar os líderes com os membros das gangues locais”.
Pesquisas recentes mostram que a preocupação de Donald Trump tem encontrado eco na população norte-americana – pelo menos, entre os seus próprios eleitores. Um levantamento divulgado na semana passada pelo Huffington Post revelou que 85% dos que votaram em Trump consideram a Mara Salvatrucha uma ameaça “séria” ou “muito séria” aos Estados Unidos. O mesmo número despenca para 32% quando são ouvidos aqueles que dizem ter votado em Hillary Clinton.
A divisão de opiniões vai além da fratura na política interna norte-americana. Especialistas em grupos como a MS-13 e sua rival, a Barrio 18, sugerem que o governo pode estar representando erroneamente o peso da gangue na violência urbana do país e exagerando a importância da imigração para a força do grupo. Na realidade, o movimento tem sido inverso àquele descrito pela Casa Branca: a organização se originou nos próprios Estados Unidos e só depois se expandiu para a América Central. Nas recentes prisões em massa realizadas pelas operações policiais, mais de dois terços dos Maras detidos eram cidadãos estadunidenses.
“Dizer que a imigração alimenta as gangues é não entender de onde vêm esses rapazes”, declarou o antropólogo Thomas Ward em entrevista ao jornal espanhol El País. Ward, autor do livro Gangsters Without Borders (“Gângsteres sem fronteiras”, sem edição brasileira), é professor da Universidade do Sul da Califórnia e conviveu por oito anos com integrantes da MS-13 para escrever seu estudo. “As gangues são tão norte-americanas como a torta de maçã ou o beisebol”, vaticinou.
Grupo nasceu em Los Angeles
A data exata em que as Maras começaram a se formar nos Estados Unidos é um mistério. Sabe-se que a origem do grupo se deu em algum momento no início dos anos 80, nas ruas de Los Angeles, na Califórnia. O começo pouco tinha a ver com a dimensão atual do grupo. No início, o que viria a ser a MS-13 não passava de uma congregação de jovens que se reuniam para escutar heavy metal e fumar maconha, descreve Thomas Ward, além de se proteger de outros grupos mais violentos que também viviam nos subúrbios da cidade.
Em comum, o fato de que todos eram filhos de imigrantes vindos de El Salvador, refugiados da Guerra Civil que engoliu o país entre 1979 e 1992. Com dificuldades de adaptação ao novo país, os jovens encontravam no grupo uma forma de inclusão e proteção frente a outras gangues que na época dominavam as vizinhanças pobres de Los Angeles. Mas, na briga por poder, não tardou para a Mara se transformar em um grupo armado associado ao narcotráfico. Conforme as atividades criminosas foram entrando na rotina da organização, pertencer à Mara também se tornou uma chance de ganhar dinheiro rapidamente.
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A origem dos primeiros integrantes aparece ainda hoje no nome com que são conhecidos: Mara Salvatrucha é uma junção de termos e expressões de origem centro-americana. “Mara” é um termo usado em El Salvador e nos países vizinhos para se referir às gangues urbanas, “Salva” faz referência às raízes salvadorenhas de seus fundadores e “trucha” significa literalmente “truta”, mas também é uma gíria para alguém que está sempre alerta e vigilante, utilizada normalmente para os malandros de rua.
Com o tempo, o grupo também adotou a sigla MS-13 – o número viria da inicial “M”, a 13ª letra do alfabeto, e teria sido incluído no nome para representar o alinhamento das Maras à Máfia Mexicana, conhecida como “La eMe”, uma parceria que surgiu nos corredores dos presídios norte-americanos.
Rituais e símbolos
Desde seus inícios, a MS-13 se expandiu drasticamente e mudou bastante. Ainda na década de 80, o grupo começou a ganhar espaço no noticiário pelos crimes violentos e execuções que promovia contra gangues rivais – ou seus próprios integrantes, em episódios de punição –, e cruzou as divisas da Califórnia.
Alguns traços da época da fundação permaneceram intactos: a simbologia satanista associada ao heavy metal dos anos 80 foi incorporada como uma característica primordial do grupo, em seus gestos e rituais – até hoje, por exemplo, os integrantes da Mara se cumprimentam fazendo a “mão chifrada”, com o dedo mínimo e o indicador levantados.
Outras características foram se somando ao longo das décadas, em especial as tatuagens de corpo inteiro fazendo menção a símbolos do grupo. Até poucos anos atrás, era comum que os integrantes ostentassem as letras “M” e “S” tatuadas inclusive no rosto, algo que líderes da Mara Salvatrucha passaram a desencorajar nos últimos tempos, para que seus membros pudessem passar mais despercebidos fora da prisão e não chamassem a atenção da polícia.
Após a associação com a “eMe”, o número 13 também ganhou proeminência na simbologia da Mara. Hoje, muitos ritos internos giram em torno dele: um jovem que queira entrar na gangue precisa suportar um ritual de espancamento pelos integrantes mais antigos – tudo enquanto um deles conta lentamente até 13. As punições para quem sai da linha ocorrem da mesma forma, mas em múltiplos do número, como 26 ou 39.
Expansão internacional
Hoje, o FBI, a polícia federal dos EUA, estima que a MS-13 conte com 10 mil membros no país, espalhados em até 46 estados diferentes. Em termos organizacionais, porém, a gangue é um desafio às autoridades. Apesar de as falas de Trump darem a entender que se trata de um grupo controlado com mão de ferro desde El Salvador, estudiosos apontam em outra direção.
“A gangue é frouxamente organizada nos Estados Unidos. Ela pode ser mais bem descrita como uma federação de grupos adolescentes de bairros que compartilham a ‘marca’ da MS-13”, explica José Miguel Cruz, pesquisador da Universidade Internacional da Flórida especializado em gangues centro-americanas, em artigo ao Washington Post. Sem uma estrutura vertical hierarquizada como ocorre com os cartéis e máfias, as Maras funcionam como células relativamente independentes umas das outras, como pequenas “franquias” do crime. “Lideranças nacionais ou locais normalmente não são reconhecidas além de suas fronteiras”, diz Cruz.
De fato, a MS-13 tem sua maior força em El Salvador, mas graças a um caminho inverso: a organização se estabeleceu no país após os membros da Mara nos Estados Unidos serem deportados nos anos 80 e 90. Com as forças de segurança salvadorenhas enfraquecidas pelos anos de Guerra Civil, o grupo conseguiu rapidamente controlar o crime organizado no país, cobrando para “proteger” moradores e estabelecimentos comerciais, e executando grupos rivais ou cidadãos que cruzarem o seu caminho.
Hoje, El Salvador é considerado o país mais violento do mundo: segundo dados do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), o país registra cerca de 83 homicídios a cada 100 mil habitantes, quase o triplo do Brasil. Segundo o Banco Central de El Salvador, a violência promovida por gangues como a MS-13 custa ao país até 16% de seu PIB a cada ano. A Mara Salvatrucha tem braços fortes no México, na Guatemala e em Honduras, e pequenas células já foram identificadas na Espanha.
Apesar disso, não existe indício de coesão interna entre os vários grupos que se identificam como MS-13. Mesmo assim, a similaridade das ações, a associação com a Máfia Mexicana e a solidariedade interna do grupo – particularmente dentro da prisão – fizeram com que a Mara se tornasse, em 2012, a primeira gangue de rua a ser considerada uma “organização criminosa transnacional” pelo governo norte-americano. A classificação havia sido aplicada antes a grupos mafiosos como a japonesa Yakuza, a italiana Camorra e a mexicana Zetas.
Outras gangues
A MS-13 costuma aparecer mais na imprensa norte-americana devido à grande violência de suas ações: decapitações, estupro e assassinato de menores de idade, destruição de cadáveres, etc. Mas, embora seja a gangue mais midiática, a Mara está longe de ser o principal grupo desse tipo nos Estados Unidos, ao contrário do que a Casa Branca tem indicado.
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Os 10 mil membros da Mara Salvatrucha nos Estados Unidos são uma parcela ínfima dos cerca de 1,4 milhão de integrantes de gangues criminosas ao redor do país – grupos como os Crips, uma gangue afro-americana formada em Los Angeles no fim dos anos 60, ou os Latin Kings, surgida em Chicago na década de 50, contam com números ainda maiores de afiliados, e são responsáveis por muito mais assassinatos que os salvadorenhos todos os anos.
Mesmo a Barrio 18, considerada a grande rival da MS-13 nos Estados Unidos mas muito menos falada, tem um número estimado de 50 mil membros, cinco vezes mais que a Mara Salvatrucha. Nos últimos cinco anos, a MS-13 respondeu por apenas 0,37% do total de membros de gangues presos no país, e somente 0,02% do total de pessoas que cruzaram a fronteira no período eram menores de idade com alguma ligação com a Mara.
Para Hannah Dreier, repórter da agência ProPublica que há cinco anos acompanha os passos da MS-13, a Casa Branca está mirando no lugar errado ao ignorar as principais vítimas do grupo: os próprios imigrantes, regularizados ou não perante a lei. A jornalista destaca que os alvos da Mara estão longe de ser aleatórios ou acidentais: das seis vítimas identificadas nos crimes mais recentes quando o governo lançou sua nota sobre os “animais” da MS-13, cinco eram imigrantes e outro era filho de imigrantes.
“A gangue realmente está aterrorizando uma parte da população: jovens imigrantes latinos em algumas comunidades específicas”, conclui Dreier.
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