Forças apoiadas pelos EUA declararam a derrota final do autodeclarado califado do Estado Islâmico no sábado (23), encerrando o brutal experimento de construção de Estado que atraiu soldados de todo o mundo e infligiu sofrimento inimaginável àqueles que foram atingidos pela violência dos militantes no Iraque e na Síria.
As Forças Democráticas da Síria (FDS) hastearam a sua bandeira amarela no topo de um prédio com marcas de balas no vilarejo de Baghouz, no leste da Síria, substituindo a bandeira negra que restava sobre o terreno onde os militantes mais indefectíveis lutaram pela última vez.
Em sua conta no Twitter, o porta-voz da FDS, Mustafa Bali, declarou a “eliminação total” do controle territorial do Estado Islâmico, quatro anos e meio depois que a expansão do grupo pelo Iraque e pela Síria levou os Estados Unidos à guerra para eliminar o EI.
O fim do califado, porém, não significa o fim do Estado Islâmico, alertam autoridades e analistas americanos. Com a aproximação de sua derrota territorial, os militantes mudaram de marcha e começaram a se reagrupar como uma insurgência que já está desestabilizando áreas de onde foram expulsos anos atrás.
Mas foi, mesmo assim, um momento marcante, conquistado com dificuldade e a um preço alto.
Dezenas de milhares de pessoas perderam a vida em massacres e execuções cometidas pelos militantes, nas batalhas para desalojá-los e nos ataques aéreos que forneceram a força para a luta. Milhares de mulheres da minoria religiosa yazidi foram escravizadas e muitas ainda estão desaparecidas.
As vítimas dizem que talvez nunca consigam apagar as lembranças dos horrores que sofreram.
“Se você tivesse me dito que o Estado Islâmico terminaria, depois de todo esse tempo e todas essas mortes, eu nunca teria acreditado em você. Talvez eu ainda não acredite”, disse Mahdiya, 28, membro da minoria iraquiana yazidi que viveu quase cinco anos como escrava.
“Eles aparecem para mim em meus sonhos; eles aparecem para mim quando eu fecho meus olhos”, disse ela. “Eles tiraram tanto de nós que me pergunto se nos sentiremos realmente livres aqui”.
As FDS disseram que 11 mil de seus combatentes morreram lutando contra os militares na Síria. Embora as forças de segurança iraquianas e milícias que combateram o grupo no Iraque não tenham divulgado números de baixas, estima-se que pelo menos um número equivalente de suas forças tenha sido morto.
A guerra havia custado aos Estados Unidos US$ 28,5 bilhões até dezembro, segundo o Pentágono, e um total de 16 soldados dos EUA foram mortos em ação, entre os 72 que morreram enquanto serviam na operação Inherent Resolve, como a campanha foi chamada.
A perda do seu território foi um golpe arrasador para as ambições do Estado Islâmico, que em seu auge controlava uma área do tamanho do Reino Unido e comandava um exército de cerca de 100.000 homens.
“Vocês conquistarão Roma e controlarão o mundo”, o líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, prometeu aos seus seguidores em julho de 2014, quando proclamou a criação do chamado califado na Grande Mesquita de al-Nuri, em Mosul.
No sábado, tudo o que restou dessa ostentação foi a pilha de tendas destruídas, veículos bombardeados e cadáveres espalhados pelos campos empoeirados de Baghouz, de acordo com imagens feitas por jornalistas escoltados pelas FDS.
A batalha de Baghouz, mais violenta do que o esperado, deixou claro o perigo de que o Estado Islâmico possa ainda manter capacidades consideráveis.
A luta foi muito mais difícil do que se previa, porque havia muito mais combatentes na aldeia do que pensavam os militares americanos. Em janeiro, funcionários do Pentágono estimaram que haveria cerca de 2 mil combatentes. Na semana passada, a FDS disse que matou 12 mil e deteve mais de 500. Além disso, mais de 72 mil civis escaparam da área, mais de dez vezes mais do que os 7 mil que os trabalhadores humanitários esperavam atender.
Os militares dos EUA estimam que mataram 70 mil dos cerca de 100 mil combatentes do Estado Islâmico, um número que parece ter dado origem a cálculos de que há 30 mil combatentes do Estado Islâmico ainda à espreita em terreno liberado. Autoridades militares dos EUA dizem que esse número é muito alto, embora reconheçam que todos os números são aproximações.
Ameaça continua
Não há dúvida, no entanto, de que o Estado Islâmico continua sendo uma ameaça poderosa à estabilidade do Iraque e da Síria, dizem oficiais militares e analistas.
“O EI não fará grandes surpresas tão cedo, mas o que restar dele depois do califado ainda será um grande desafio”, disse Hassan Hassan, que estuda o grupo no Centro para Políticas Globais, com sede em Washington. “Se os esforços contra eles forem bem-sucedidos, eles sempre serão pequenos. Se não, você pode esperar algo como um outro Talibã, com eles efetivamente controlando grandes áreas nas sombras e podendo alcançar qualquer pessoa nas cidades ou aldeias”.
No Iraque, onde a organização se originou, os militantes já se reagruparam como um insurgente rural nas áreas norte e leste de Bagdá e têm realizado assassinatos e atentados regularmente.
Na Síria, houve menos sinais de um renascimento organizado, mas as autoridades alertam que isso pode não durar.
“Atualmente, o EI está regenerando funções e capacidades-chave mais rapidamente no Iraque do que na Síria, mas sem pressão sustentada de contraterrorismo, o EI poderia ressurgir na Síria possivelmente dentro de seis a doze meses e recuperar território limitado”, disse um relatório enviado pelo inspetor geral do Pentágono ao Congresso em fevereiro.
O presidente Donald Trump, que saudou a derrota do califado, prometeu em um comunicado manter-se “vigilante” contra um retorno do Estado Islâmico, “alinhando forças globais de contraterrorismo”.
“Enquanto ocasionalmente esses covardes podem ressurgir, eles perderam todo o prestígio e poder. Eles são perdedores e sempre serão perdedores”, disse ele, acrescentando uma advertência aos jovens que poderiam ser atraídos pela propaganda do grupo: “Você estará morto se você se juntar a eles. Pense, em vez disso, em ter uma ótima vida”.
Oficiais militares dos EUA também alertaram que a incerteza em torno dos planos de Trump de retirada das tropas e eventual retirada da Síria poderia criar um vácuo de segurança dentro do qual o Estado Islâmico poderia se reagrupar.
Muitos analistas culpam o vácuo deixado pela saída das tropas americanas do Iraque para a rápida regeneração da insurgência da al-Qaeda que por fim se tornou o Estado Islâmico. A rebelião na vizinha Síria, que viu a autoridade estatal colapsar em vastas áreas, também desempenhou um papel, dando espaço aos militantes baseados no Iraque para se reagruparem, organizarem e prepararem a sua passagem pelos dois países.
A campanha militar liderada pelos EUA começou em agosto de 2014, depois que os militantes varreram o Iraque, prenderam milhares de yazidis indefesos em uma montanha e ameaçaram a administração curda aliada dos EUA no norte.
Os militantes descreveram a terra que eles tomaram como um Estado islâmico e, muitas vezes, elas tinham algumas características de um Estado real. Burocratas lidavam com tarifas domésticas e coleta de lixo. O grupo cunhou suas próprias moedas. Ele também impunha leis severas que incluíam execuções e decapitações por ofensas relativamente menores.
O fim da guerra colocará em foco os vastos desafios que estão por vir. Dezenas de bilhões de dólares em prejuízos foram infligidos às economias e infraestrutura do Iraque e da Síria. Cidades, bairros e aldeias foram arrasados, com pouca esperança de que eles serão reparados em breve. Mais de 5 milhões de pessoas fugiram de suas casas e pelo menos 2 milhões ainda estão desabrigadas, muitas porque não têm casas para onde voltar.
O fracasso em reconstruir e levar as pessoas para casa já está alimentando o tipo de queixas e divisões sociais que impulsionaram a ascensão do Estado Islâmico, alertaram autoridades militares e grupos de direitos humanos.
As prisões estão lotadas com combatentes suspeitos, incluindo centenas de ocidentais cujos governos se recusam a repatriá-los.
Mas este foi um momento para saborear a vitória. Em uma cerimônia realizada pela FDS, de maioria curda, em sua base de campo de petróleo de Omar, perto de Baghouz, músicos com distintivos militares dourados tocaram o hino nacional dos Estados Unidos e o hino nacional curdo e prestaram homenagem àqueles que sacrificaram suas vidas.
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