Durante anos, as lâminas brilhantes de vidro espalhadas por toda a ilha foram vistas como prova do derramamento de sangue de seus antigos moradores. Com seu meio ambiente devastado e seu modo de vida comprometido pelo desmatamento e pelo uso excessivo da terra, o povo da Ilha de Páscoa, no Chile, foi levado à guerra, segundo estudiosos, e a sociedade outrora próspera que construiu os grandiosos monólitos moai foi reduzida a apenas algumas centenas famintos.
“Ela representa um caso clássico de um povo que esgotou os recursos naturais e acabou encarando a luta e a guerra”, Carl Lipo, disse à BBC World Service o arqueólogo Carl Lipo, da Universidade de Binghamton, em Nova York.
Tão clássico que pesquisadores como Jared Diamond apontam a ilha como uma história de alerta para os leitores modernos: “o exemplo mais claro de uma sociedade que se destruiu pela exploração excessiva dos seus próprios recursos.”
Como a história conta, esses descendentes de um pequeno grupo de intrépidos colonos polinésios que desembarcaram na ilha em algum momento entre 700 e 1200 d.C., depois de navegarem mais de 1.000 milhas pelo Pacífico, eram uma comunidade de agricultores que florescia.
Eles construíram centenas de estátuas moai, de olhos fundos e imponentes, que ainda são consideradas maravilha da engenharia. Mas o seu crescimento rápido e voraz à base da agricultura de corte e queima devastou a paisagem, Diamond e outros argumentam.
O ecossistema entrou em colapso, levando a sociedade sa Ilha de Páscoa com ele. Clãs entraram em guerra pelas fontes restantes e escassas de alimentos e, em alguns casos, partindo até para o canibalismo. As pessoas cujas proezas da engenharia eram tamanhas que ainda hoje a sua capacidade de construir e mover estátuas maciças desafiam as melhores explicações dos historiadores desapareceram. Foi um triste caso de o o que Diamond chama de “ecocídio”.
“Se alguns milhares de habitantes na Ilha, com apenas ferramentas de pedra e seus próprios músculos foram suficientes para destruir seu meio ambiente e, assim, sua sociedade”, ele escreveu em seu livro de 2005 ‘Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed’, “como podem não fazer pior as bilhões de pessoas com ferramentas de metal e com a potência das máquinas atuais? “
É uma narrativa arrepiante, mas que pode não estar 100% correta, defende Carl Lipo. Ele é o principal autor de um novo estudo publicado na revista arqueológica Antiquity que argumenta que as lâminas onipresentes, muitas vezes apontadas como responsáveis pelo colapso da ilha, não são, afinal, armas - elas são apenas ferramentas.
E elas são mais uma prova, diz Lipo, de que nós estamos contando a história errada sobre o que aconteceu na Ilha de Páscoa. Não é um conto moral sobre os perigos do excesso - é uma saga sobre um povo inventivo que projetou seu ambiente para fazer o aproveitamento máximo de escassos recursos, mas que foi vítima das doenças e da avareza humana de quando os exploradores europeus chegaram.
Não eram armas
Este é um argumento que Lipo e seu co-autor, Terry Hunt, têm sustentado há algum tempo - praticamente desde que começaram a estudar a Ilha de Páscoa, também chamada de Rapa Nui, em 2000. Em seu livro, ‘The Statues that Walked’, eles dizem que os ratos clandestinos que acompanharam os colonos polinésios pioneiros até a ilha foram, em partes, responsáveis pelo rápido desmatamento que aconteceu lá. Mas, em vez de sucumbir ao desespero e à discórdia, os moradores da Ilha de Páscoa encontraram maneiras de lidar com isso.
Sem poder pescar, por não ter madeira para construir canoas, os ilhéus estabeleceram uma dieta à base de carne de rato. Com solo degradado pela rápida mudança ecológica, queimaram árvores e criaram jardins com pedras quebradas para enriquecê-lo; quando os ventos do mar batiam sobre estas pedras, nutrientes extras eram liberados no solo, aumentando a sua produtividade o suficiente para sustentar a agricultura de subsistência. A sociedade da ilha foi reduzida, talvez, mas não destruída.
As lâminas são as mais recentes evidências que Lipo e Hunt acrescentaram à sua teoria. Estas peças triangulares de obsidiana - uma rocha vulcânica - eram originalmente pensadas como pontas de lança, de acordo com um comunicado para a imprensa da Universidade Binghamton.
Mas quando Lipo, Hunt e seus colegas conduziram uma análise quantitativa de mais de 400 das lâminas, eles descobriram que os pedaços de vidro seriam armas muito fracas e pouco parecidas com outros tipos de lanças de civilizações semelhantes.
“Armas europeias ou as encontradas em qualquer outro lugar do mundo, quando realmente são objetos utilizados para a guerra, são muito sistemáticas na sua forma. Elas têm que fazer o seu trabalho muito bem. Se não o fizer, há risco de morte”, disse Lipo em um release.
As lâminas de Páscoa, pelo contrário, variavam muito em tamanho e forma e não foram projetadas para a luta. Em vez de serem longas e finas, aptas a perfurar corpos e ferir órgãos, elas eram curtas e largas - mais como uma espada do que uma lança, disse ele à BBC. “Simplesmente não há evidências para apontar que tenham sido utilizadas de uma forma sistemática para matar”, disse Lipo. “Elas eram bem diferentes e tinham formas muito ruins para servir como arma”.
Isto parece apoiar a ideia de que a ilha não passou por um período de lutas internas e ruína, argumenta. Em uma sociedade onde a guerra é galopante e a violência é o único meio de sobrevivência, as pessoas certamente teriam aprendido a fazer melhores armas do que as que Lipo e Hunt encontraram. É mais provável que as lâminas tenham sido utilizadas para fins rituais e cultivo - tatuagem, plantio e assim por diante - e raramente eram usadas contra um ser humano.
Devastação europeia
Então, se não foram as batalhas internas que mataram os habitantes da ilha, o que matou?
“As doença que foram introduzidas e a escravidão imposta por pessoas de fora da ilha”, disse Lipo à BBC.
A primeira evidência registrada do contato de um europeu com pessoas da ilha são de 1722, quando o explorador holandês Jacob Roggeveen visitou a ilha por uma semana. Ele escreveu que a população era em torno de milhares de pessoas- um número provavelmente subestimado, uma vez que muitos habitantes esconderam depois que Roggeveen e seus homens atiraram e mataram cerca de uma dúzia deles. A interação não foi boa para os habitantes da ilha, que Roggeveen descreveu como “muito frutífera”.
Mas um século e meio mais tarde, anos de conflito, doença e ataques impostos pelos europeus fizeram suas vítimas. Apenas 111 habitantes viviam na ilha na década de 1870.
Esta teoria tem críticos.Diamond escreveu uma refutação ao livro de Lipo e Hunt em 2011, argumentando que os pesquisadores superestimaram o efeito de ratos. Em uma carta à revista Current World Archaeology, os especialistas na Ilha de Páscoa Paul Bahn e John Flenley também contestaram as reivindicações de Lipo e Hunt. Eles ressaltam que a análise de esqueletos pré-históricos mostraram evidência de trauma letal, e há uma longa tradição oral na ilha de histórias sobre um passado violento.
Mas há também um grupo crescente de pesquisadores que apoia a alegação não-ortodoxa. Mara Mulrooney, antropóloga havaiana, publicou um estudo em 2013 argumentando que os níveis de nutrientes no solo em toda a ilha realmente melhoraram com o desmatamento. Em vez de trazer sua ruína, a remoção de árvores da ilha era uma estratégia para ajudar os habitantes a sobreviver.
“Eles fizeram o ambiente mais produtivo do ponto de vista alimentar”, disse Mara à rede NPR.
“Os arqueólogos, em vez de analisarem a própria evidência, estavam pegando as provas e encaixando em um pensamento já existente e que estava desatualizado”, disse.
Christopher M. Stevenson, da Virginia Commonwealth University, complicou a questão com um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no ano passado. Nele, o pesquisador disse que a ilha passou por mudanças demográficas antes do contato europeu, e eles foram causados por mudanças nos padrões climáticos, e não por uma crise de fome. O rápido colapso veio depois, quando os exploradores europeus trouxeram varíola, sífilis e a escravidão para a ilha.
Talvez não haja uma história sobre a Ilha de Páscoa, nenhuma narrativa que defina perfeitamente o que aconteceu em um dos lugares mais isolados e enigmáticos do mundo. E isso é bom, Mara disse à NPR. “É assim que a ciência trabalha”.
“Talvez a história possa mudar, talvez o pêndulo possa voltar no sentido de apoiar que houve um colapso”, disse. “Mas, por enquanto eu gosto de pensar que, como cientista, confio no que os dados dizem”. “Essa é a beleza da arqueologia, ela está sempre mudando.”
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