As expectativas eram altas. Há um par de anos a oposição a Nicolás Maduro não se via tão forte na Venezuela e aquela ocasião era considerada por alguns como uma grande oportunidade de derrubar o ditador do poder ao enfraquecer o principal pilar de sustentação do regime chavista: o apoio das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (FANB).
Sob a liderança de Juan Guaidó, reconhecido como presidente interino da Venezuela por mais de 50 países, os opositores elaboraram um plano que consistia em levar a ajuda humanitária, doada majoritariamente pelos Estados Unidos, para dentro da Venezuela, à revelia de Maduro. Desta maneira, eles esperavam que, além de levar um alento à faminta população, os militares de patentes mais baixas, comovidos pela situação de miséria que vivem seus compatriotas,vizinhos e até familiares, liberariam a entrada dos alimentos e medicamentos, o que seria visto como uma demonstração de apoio à Guaidó.
O “Dia D” para a entrega da ajuda humanitária ocorreu em 23 de fevereiro, uma data simbólica para a oposição, já que há exato um mês Guaidó havia se juramentado como presidente interino da Venezuela frente a centenas de milhares de venezuelanos que naquele dia protestavam contra Maduro.
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Atendendo ao chamado de Guaidó, no dia marcado, uma multidão se dirigiu à fronteira da Colômbia com a Venezuela, a maioria venezuelanos que haviam sido acolhidos pelo país vizinho – em janeiro de 2019 a Colômbia já havia recebido 1,1 milhão de venezuelanos segundo a Agência da ONU para Refugiados. O mesmo ocorreu na divisa com o Brasil, em menor número.
Logo pela manhã, entretanto, era possível perceber que talvez a oposição tivesse dado um passo maior do que deveria. Os militares seguiram as ordens de Maduro para não deixar passar a ajuda humanitária e os confrontos começaram. Também houve o envolvimento, segundo relato de jornalistas in loco, de milícias favoráveis ao regime chavista, os chamados “colectivos”. No fim do dia, quatro pessoas haviam morrido, dezenas ficaram feridas, dois caminhões carregados com comida e remédios foram queimados e nenhuma ajuda conseguiu passar para o lado venezuelano.
Não demorou muito para que Maduro e seus aliados fossem à público cantar vitória. Para eles, o envio da ajuda humanitária pelos Estados Unidos é o pretexto para uma intervenção militar americana na Venezuela. Maduro chegou a dizer que os alimentos estavam envenenados e que eram cancerígenos.
“Nós ganhamos uma grande vitória, a principal vitória é a paz, eles chamaram a guerra no dia 23 e eles não conseguiram”, disse Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Constituinte da Venezuela e número dois do chavismo. “Mostramos a eles, não caímos no que eles queriam, não caímos, não lhes demos os mortos que queriam, agimos com muita inteligência, contendo e afrouxando até chegarmos à vitória", afirmou ele.
Mas o que se passou naquele fim de semana nem de perto foi uma “vitória” para os chavistas. Como lembra o professor de Negócios Globais na Faculdade Saint Mary's da Califórnia (EUA) e pesquisador da política venezuelana, Marco Aponte-Moreno,embora seja verdade que a ajuda humanitária não tenha entrado no território venezuelano, a operação mostrou ao mundo um dos lados mais obscuros do regime Maduro: a brutal repressão a que o povo da Venezuela está sujeito. “A operação conseguiu mostrar que na Venezuela não existe apenas uma terrível crise humanitária, mas também uma grave crise de violações dos direitos humanos”, argumenta.
Como é sabido, Guaidó tampouco logrou o que queria. “É evidente que a oposição tinha um objetivo político ao tentar passar a ajuda humanitária, que era alavancar e justificar a liderança de Guaidó”, afirma o cientista político e professor da Universidade Central da Venezuela, Miguel Latouche, acrescentando que “as partes fizeram apostas muito altas e com muito custo político”.
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Latouche avalia que a oposição fez uma avaliação errada sobre a estrutura e situação das FANB ao apostar em uma quebra da unidade de comando da instituição, o que não ocorreu, apesar da oferta de anistia e das pressões de potências estrangeiras. “É óbvio que as FANB são o eixo central que suporta Maduro, mas é necessário considerar que estamos na presença de um governo militar, que é nesse grupo onde a tomada de decisão é definida”, afirma Latouche, acrescentando ainda que um golpe de Estado seria um golpe contra os próprios militares.
Houve algumas deserções nas FANB, que já vinham acontecendo desde 2014 e continuam. De acordo com a imigração colombiana, naquele fim de semana cerca de 170 militares venezuelanos pediram refúgio no país, ou seja, menos de 1% dos homens do exército venezuelano e insuficiente para causar uma ruptura imediata na instituição. Analistas consideram-as como um movimento simbólico, mas que proporcionou uma visão sobre o que está se passando nas FANB neste momento turbulento.
Laura Gamboa, professora de Ciência Política na Utah State University, avalia que o número de deserções é significativo porque poderia causar um efeito bola de neve. “Mas, se as deserções não continuarem, então não é significativo. As forças armadas venezuelanas são muito grandes e o número de oficiais é muito alto. Para poder dizer que esta é a quebra final da FANB, ainda há um longo caminho a percorrer”, destacou.
“Graças às deserções que ocorreram desde aquele dia, sabemos agora o alto grau de infiltração de tropas paramilitares cubanas e venezuelanas, conhecidas como colectivos, no exército venezuelano”, conta Aponte-Moreno.Para ele, a ruptura nas FANB ocorrerá, no entanto, é muito difícil saber se será iminente ou não. “Provavelmente vai levar algum tempo devido ao elevado número de paramilitares e cubanos infiltrados na guarda nacional”, afirmou professor.
“De acordo com o que dizem alguns desertores, os cubanos mantêm um controle de ferro sobre o exército. Esse controle é reforçado pelos paramilitares. De alguma forma, o exército está preso em si mesmo”.
Retórica belicosa e sanções
Passado o fim de semana, a situação nas fronteiras começava a voltar ao normal. A tensão política, entretanto, continuava no auge. Ainda no dia 23, à noite, Guaidó afirmou que considerava uma opção militar para pôr fim à usurpação de poder por parte de Maduro.
"Os acontecimentos de hoje (dia 23) me obrigam a tomar uma decisão: sugerir à comunidade internacional de maneira formal que devemos ter abertas todas as opções para conseguir a libertação desta pátria que luta e seguirá lutando”.
Em entrevista à Folha de S.Paulo no dia seguinte, Guaidó confirmou que estava fazendo referência a uma possível intervenção militar. “Eu quis dizer exatamente isso, que devemos considerar todas as opções. A Constituição venezuelana dá à Assembleia Nacional o direito de solicitar apoio desse tipo. Não é o que buscamos, mas é uma possibilidade que, responsavelmente, não podemos descartar dada a atitude das forças e interesses que sustentam a usurpação na Venezuela."
As frases de Guaidó ecoaram o discurso do presidente dos EUA, Donald Trump, e de seu conselheiro de segurança nacional, John Bolton, que em ocasiões anteriores haviam dito que a intervenção militar é uma das opções sobre a mesa quanto à crise venezuelana. Para colocar ainda mais pressão sobre o assunto, o senador republicano, da Flórida, Marco Rúbio, um dos mais vocais críticos de Maduro nos EUA, publicou fotos do ditador da Líbia, Muamar Kadafi, aparentemente ligando o destino de Maduro com o do ditador líbio, que foi derrubado e morto em 2011. A possibilidade de uma guerra civil começou a ser aventada.
“Muitos venezuelanos, especialmente no exterior, acham que a única maneira de Maduro deixar o poder é através de uma intervenção militar. Isto ocorre porque vêm tentando mudar o regime há muitos anos e, por outro lado, foram levados pela retórica do governo de Donald Trump. ‘Todas as opções permanecem na mesa’, repetiram os funcionários do governo Trump inúmeras vezes.O objetivo deste discurso foi provocar as deserções dos militares através de uma ameaça latente”, explica Aponte-Moreno.
Mas a retórica belicosa teve um fim já na segunda-feira (25). Após uma reunião com Guaidó e o vice-presidente americano, Mike Pence, os países do Grupo de Lima, com exceção do México, emitiram uma declaração rechaçando a possibilidade de uma intervenção militar na Venezuela. O documento estabelece que a transição democrática na Venezuela deve ser conduzida “pacificamente pelos próprios venezuelanos”, com apoio de meios políticos e diplomáticos e “sem o uso da força”. Países europeus também reafirmaram seu desejo de que a transição democrática no país seja pacífica.
O vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, que representou o país na reunião do Grupo de Lima, classificou o regime chavista como um regime de “privilégios, discriminação e violência, que não respeita o estado de direito”. Ele afirmou também que o bloqueio à entrada de ajuda humanitária na Venezuela foi uma “violação dos direitos humanos”, mas pontuou que “é preciso devolver a Venezuela ao convívio democrático, sem medidas extremas”, defendendo a imposição de sanções econômicas ao regime.
“Agora que alguns dias se passaram, os venezuelanos estão percebendo que o processo será longo e diplomático, pelo menos até que a liderança militar venezuelana reaja”, disse Aponte-Moreno.
Mas enquanto a via da intervenção militar é descartada, as pressões diplomáticas e econômicas por si só serão suficientes para ocasionar a queda de Maduro?
É certo que essas pressões externas desempenham um papel fundamental para que uma transição democrática ocorra na Venezuela, colocando o regime chavista contra o muro ao reduzir seu acesso a fundos que os permitem comprar lealdades.
Mas, de acordo com Latouche, sanções econômicas não são suficientes para garantir a queda de um governo. “Há muitos exemplos na história da comunidade internacional de regimes que permaneceram no poder apesar de terem sido sancionados”. Cuba é um dos mais latentes.
O efeito colateral das sanções, entretanto, é tornar ainda mais delicada a situação de milhões de venezuelanos que não têm o que comer, que se veem forçados a buscar alimentos no lixo, que assistem seus parentes morrer pela falta de remédios.
Andrea Oelsner, professora de Relações Internacionais da Universidade de Aberdeen, lembra que as sanções são criticadas porque causam maior sofrimento à população, "mas é isso o que pode finalmente levar o povo a rebelar-se para desfazer um governo ilegítimo".
Interesses internacionais
Existem interesses muito fortes na comunidade internacional em relação à Venezuela. Os países vizinhos temem que uma maior desestabilização desencadeie processos de violência e de um fluxo maior de imigrantes. Fora da região, outros países também têm seus interesses.
“Os Estados Unidos querem que o governo caia, a Rússia claramente apoia o governo, e a China no momento apoio o regime, mas já deu mensagens mais ambíguas, e seguramente está disposta a negociar, porque a China precisa que o país lhe pague as suas dívidas”, diz Oelsner.
Enquanto a Rússia também espera que a Venezuela pague as dívidas que tem com o país, ela tem outros motivos para continuar apoiando Maduro. “A Rússia investe dinheiro em troca de apoio venezuelano em fóruns internacionais; em troca de Maduro manter um discurso anti-imperialista. Assim, a Rússia o vê em termos ideológicos, enquanto a China faz uma interpretação mais pragmática e econômica”, compara Oelsner.
Cenários possíveis
É difícil saber se a campanha da oposição vai ser bem-sucedida, mas há razões para ter esperança, acredita Gamboa. Em primeiro lugar, essa é a primeira vez que a oposição está unida, em parte pelo perfil de Guaidó, que não tem um passado político muito visível e não vem das elites políticas ou econômicas tradicionais do país. “Adicionalmente, ele tem uma mistura adequada de radical e moderado. Ele é membro do Voluntad Popular, uma das facções ‘radicais’ da oposição, mas individualmente é moderado, o que ajudou a trazer as facções radicais e moderadas à mesa”, explica Gamboa, que lembra que antes desse ano, o apoio da comunidade internacional à Venezuela era muito tímido, e que essa é a primeira vez que vemos tantos países unidos em favor de uma mudança de regime.
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O apoio da comunidade internacional a Guaidó acontece, em grande parte, porque a oposição tem usado estratégias que não deixam dúvidas quanto às suas credenciais democráticas. “Esse é um bom sinal não só para o momento que estamos vivendo, mas também para o que poderia vir caso Maduro sai do poder. A oposição não parece estar improvisando”.
“Há razões para ser pessimista também”, pondera Gamboa. “Primeiro, não vimos sinais de que as pessoas mais próximas a Maduro estejam prontas para abandoná-lo. Os riscos ainda são muito altos. Segundo, a pressão que se pode fazer é limitada. É possível que Maduro decida não ceder, e nesse caso a situação vai ficar muito difícil para a oposição. Fora de uma opção militar – que creio que não é provável – ela poderia ficar sem opções”, pondera Gamboa.
A situação é muito incerta e os especialistas não arriscam limitar os cenários possíveis. Uma possibilidade, pelo meno na teoria, é a de que Maduro implemente mudanças econômicas que comecem a reverter a situação econômica do país. “Na prática, é difícil ver como ele poderia fazer isso sem perder o apoio de seu círculo mais próximo, que se beneficia de todo tipo de atividades ilegais relacionadas, entre outras coisas, com o controle sobre a economia que mantém o governo”, afirma a cientista política.
É difícil saber também como Maduro vai manter o controle sobre as forças paramilitares ou se, diante da ausência de mudança, grupos na Venezuela não vão pegar em armas contra o governo.
No caso de Maduro sair do poder, as opções também são várias. O que a oposição e a comunidade internacional querem é a realização de eleições justas e transparentes, para que a Venezuela comece o seu processo de reconstrução democrática. E mesmo essa opção esbarra em dificuldades que começam com obstáculos práticos, como a substituição dos membros do Conselho Nacional Eleitoral, que dificilmente seria resolvida em poucos dias.
“O chavismo vai deixar legados que serão difíceis de serem solucionados. Não apenas é a severa crise econômica – e o fato de que qualquer governo que assuma vá decepcionar – mas também a falta de controle do governo sobre os colectivos e outras forças criminais, em conexão com grupos armados de Colômbia, que não vão querer perder o seu poder. O desafio é muito grande”, pontua Gamboa.
Enquanto os especialistas acham difícil prever os cenários possíveis para a complexa situação da Venezuela, uma aposta é mais segura de se fazer: reconstruir o país vai levar muito tempo. “Agora serão gerações de trabalho para voltar a construir o que se destruiu”, acredita Oelsner.
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