Polêmica
Estudo encerra debate de uma década
Folhapress, em São Paulo
A decifração do genoma do neandertal é uma vitória tecnológica do sueco Svante Pääbo e de sua equipe. Desde 2006, eles tentam sequenciar o DNA dos fósseis da Croácia, enfrentando dois problemas enormes: o fato de que DNA antigo não costuma se conservar bem e a altíssima contaminação das amostras.
Cerca de 95% do DNA extraído vinha não dos ossos, mas de bactérias. Para eliminar a contaminação, foi preciso usar técnicas que iam de enzimas que picotavam DNA bacteriano ao sequenciamento de um mesmo trecho várias vezes.
O verdadeiro triunfo da nova pesquisa, porém, talvez caiba a alguém que não participou dela: o arqueólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol (Reino Unido).
Zilhão era um defensor quase solitário da mestiçagem homem-neandertal, contestado pelo próprio Pääbo. "Que quer que lhe diga senão que é o que andamos a dizer há já mais de dez anos?, brincou Zilhão, ao responder se estava se sentindo vingado pelo novo anúncio.
Como todos os grupos humanos que vivem fora da África carregam o mesmo toque neandertal em seu DNA, Pääbo e colegas propõem que a mestiçagem ocorreu nos primeiros encontros das duas espécies, entre 80 mil e 50 mil anos atrás, no Oriente Médio.
Em princípio, não há nada que impeça o nascimento de híbridos férteis de espécies muito próximas, lembra Pääbo. Ele, no entanto, diz que a discussão sobre considerar ou não os neandertais espécie separada é "infrutífera.
"Prefiro dizer que eles simplesmente eram um grupo de humanos um pouco mais diferentes de nós do que nós somos uns dos outros, mas não por uma margem muito grande.
À luz da fogueira, ele acariciou a pele clara, as pernas curtas e as madeixas ruivas da moça. Tudo nela contrastava com a tez escura e o porte esguio de seu amante. Os descendentes do encontro improvável, 50 mil anos depois, ainda estão por aí.
E não é uma família pequena: são todos os seres humanos modernos fora da África, cujo DNA carrega uma contribuição pequena, mas considerável (entre 1% e 4%), dos neandertais, primos extintos do homem. A ruiva e o moreno do romance acima representam os neandertais e o Homo sapiens.
O dado surpreendente vem da primeira análise de fôlego do genoma neandertal, que será publicada na edição de hoje da revista especializada Science por uma equipe internacional.
Liderados por Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, os cientistas conseguiram usar o material genético de três indivíduos da espécie extinta para ler cerca de dois terços de seu genoma.
Os cerca de 60% do DNA neandertal foram postos lado a lado com as "letras químicas totalmente decifradas de chimpanzés e humanos modernos. Também entraram na comparação cinco outros genomas de pessoas vivas hoje.
Tais doadores (um bosquímano do sul da África, um iorubá da África Ocidental, um nativo de Papua-Nova Guiné, um chinês e um francês) representam quase toda a diversidade genética da humanidade atual.
Passo seguinte: alinhar esses bilhões de letrinhas dos vários genomas. É mais ou menos como escrever a mesma frase várias vezes, colocando uma frase embaixo da outra, levando em conta que acontecerão erros de cópia do texto (ou seja, mutações, em termos genéticos).
Se humanos e neandertais não cruzaram depois da separação de suas linhagens, todos os humanos modernos deveriam ter o mesmo texto genético em relação ao DNA do neandertal. Mas não é o que acontece, como explicou o antropólogo John Hawks, da Universidade de Wisconsin, EUA. "Em vários casos, quando há uma diferença entre o genoma de um africano e o de um não africano, a versão das populações que não são originárias da África bate com a dos neandertais, diz ele. "O único jeito de explicar esses dados é por cruzamento, acrescenta.
Legado
Afinal, algo entre 1% e 4% do genoma de uma pessoa a contribuição calculada dos neandertais para os não africanos é pouco? Depende. Hawks fez as contas: é o mesmo legado hereditário que um tataravô ou tataravó deixaria para você.
A diferença é que, no caso dos neandertais, isso persistiu depois de 1.500 gerações, e não de cinco. De certa forma, é como se, entre quase 7 bilhões de pessoas vivas hoje, houvesse 50 milhões de neandertais por aí.
Essa talvez seja a primeira revolução mental embutida na publicação do genoma. Depois de algumas décadas caricaturando os neandertais como inferiores, lerdos, menos sofisticados, a sobrevivência dessa porção pequena mas significativa deles mostra que, paradoxalmente, eles foram um sucesso evolutivo considerável.
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