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Hamid Gul, o general paquistanês acusado pelo Ocidente de ser o “pai do Taliban”, morreu neste sábado (15) no bucólico retiro de montanha de Murree, na porção da Caxemira que pertence a seu país. Ele tinha 78 anos e sofreu um derrame.

Listado como terrorista pelos Estados Unidos, Gul era considerado um herói nacional nos meios militares do Paquistão, ainda que fosse visto como um pária pelo governo do premiê Nawaz Sharif e tivesse perdido parte de sua influência nos últimos anos.

Sua história se confunde com a da conturbada afirmação da identidade nacional do país de quase 200 milhões de habitantes, que foi extirpado da Índia quando os britânicos bateram em retirada, em 1948.

No Exército desde 1954, Gul lutou duas das guerras entre o seu país e a Índia, em 1965 e em 1971.

Participou ativamente da ditadura de Zia ul-Haq, entre 1977 e 1988.

Braço direito do presidente que islamizou a sociedade paquistanesa com elementos conservadores que perduram até hoje, Gul tratou de inserir a mesma ideologia nas Forças Armadas.

Ocupou vários cargos até chegar a diretor-geral do poderoso ISI, o serviço secreto militar paquistanês, considerado um Estado dentro do Estado.

Era 1987, e ele ajudou a escalar a guerra dos mujahedin (“guerreiros santos”) no Afeganistão contra os invasores soviéticos, que ocupavam o país vizinho desde 1979.

Naquele momento, o homem tachado de terrorista era um aliado, e Gul coordenou a entrega de recursos e armas dos EUA e da Arábia Saudita para os guerrilheiros.

A jihad (“guerra santa”) atraiu jovens muçulmanos de diversos países, como o filho de um milionário saudita chamado Osama bin Laden.

Deu certo: em 1989, enfraquecidos política e economicamente em casa, os soviéticos foram embora.

Este foi o momento em que Gul começou o seu rompimento com o Ocidente.

Removido do cargo pela premiê Benazir Bhutto, cujo assassinato em 2007 fora previsto por ela como uma possível obra de Gul, o general passou a operar nos bastidores, mantendo sob sua influência uma geração de oficiais paquistaneses.

Foi operacional para criar no principal território sob disputa com a Índia, a Caxemira, grupos de mujahedin que haviam lutado no Afeganistão.

A campanha de terror persiste até hoje, em menor intensidade, e quase levou os dois países à guerra em pelo menos duas ocasiões desde então.

Além disso, ele manteve estreitos contatos com alguns dos grupos que se engalfinharam na guerra civil que assolou o Afeganistão nos anos após a retirada soviética.

Gul, um homem de voz pausada e olhar frio, sempre dizia aos interlocutores que a falta de apoio americano aos afegãos naquele momento era um dos maiores crimes de guerra que já presenciara.

Ele viu outros.

Percebendo a ascensão de forças da etnia pashtun, majoritária no Afeganistão e da qual ele fazia parte, Gul fomentou o recrutamento de afegãos exilados nas mesmas áreas tribais paquistanesas onde ele cresceu no fim dos anos 30.

Eles eram “talibs”, estudantes em pashtun, baseados em escolas religiosas.

Aos poucos, viraram uma força própria, o Taliban, e o resto é história: tomaram Cabul em 1996 e só saíram de lá chutados pelos americanos por abrigar a Al Qaeda de Bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001.

“Isso é uma bobagem, o Taliban é uma força legítima, surgiu sozinho”, repetiu Gul nas ocasiões em que a Folha o entrevistou entre 2001 e 2011, sobre a acusação de ter sido o mentor do grupo extremista.

Certamente outros fatores concorreram, mas a força de Gul sobre os círculos militares e de espiões que ajudaram a viabilizar o Taleban foi decisiva.

De sua ampla mas simples casa na vila para militares aposentados em Rawalpindi, cidade geminada à capital Islamabad, Gul operava nas sombras.

Teve uma relação complicada com o regime militar de Pervez Musharraf, que mandou que ele fosse preso em casa, e viu a ascensão de seus dois maiores inimigos: o viúvo de Benazir, Asif Ali Zardari, virou presidente entre 2008 e 2013, e o ex-premiê Sharif voltou ao cargo em 2013 e está lá até hoje.

Perdeu contatos, mas não influência retórica.

O islamismo militante e belicista defendido por ele é dominante nos meios militares paquistaneses.

Ele sempre rejeitou a acusação americana de que tinha ligações com a Al Qaeda, o que parece bem difícil, dado o seu histórico nos anos 80 e 90, e recentemente elogiou táticas militares do Estado Islâmico – embora defendendo a islamização pacífica da sociedade paquistanesa, e não “banhos de sangue”.

Nunca escondeu seu antiamericanismo de estirpe paranoica.

Em 2001, disse que o 11/9 foi cometido pelos EUA e por Israel, uma teoria conspiratória popular em seu país.

Via em tudo uma maquinação americana para, com os indianos, acabar com o Paquistão.

Sua fala em tom professoral aumentava a sensação de estranhamento: ele parecia realmente acreditar em tudo o que falava.

Era também um analista político que costumava acertar.

Na última entrevista que concedeu à Folha de S.Paulo, em 2011, previa que a China poderia tornar-se a nova parceira do seu país no balanço estratégico da região, algo que lentamente vem ocorrendo.

Virou porta-voz de uma causa popular no seu país contra os ataques de aviões robôs americanos nas áreas tribais.

Isso lhe garantia espaço na mídia conservadora paquistanesa, mas, segundo analistas, ele já era visto como uma figura obsoleta, do século 20, entre as novas gerações de militares do país.

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