“Lembro, quando era pequena, de olhar debaixo do carro do meu pai, na garagem, para ver se tinha uma bomba”, revive, susurrando, uma das participantes do programa Praça da Memória (Memoria Plaza), um site que acaba de ser lançado pelo governo basco, no qual qualquer cidadão, sem declarar o nome, pode subir vídeos de dois minutos, gravados com o celular. Trata-se de expurgar, de falar o que durante muitos anos se calou. “Cheguei em Bilbao com 17 anos, em 1984, e achei uma cidade muito dura. Tinha amigas em Barcelona que não podiam vir me visitar, por medo das bombas. Eu achava exagerado, mas, por outro lado, estas mesmas bombas não apareciam em nenhuma conversa entre os amigos de Bilbao. Não se conversava sobre terrorismo nem com os amigos”, conta outra participante. “A primeira coisa que vem à minha cabeça são os 12 anos que vivi com guarda-costas”, recorda um jornalista, que enumera entrevistados e colegas que foram assassinados pelo ETA. “Somos sobreviventes desta falta de liberdade que se transformou em uma espécie de campo de concentração”.
A ideia é que a sociedade basca — pouco mais de dois milhões de pessoas — vá se libertando dos ódios e ressentimentos e digerindo o passado, mas sem colocar uma pedra sobre o que ficou atrás. Ao trauma da ditadura franquista, que durou até 1975, se uniu o sofrimento de conviver com o medo à violência da organização armada independentista ETA durante 50 anos, que matou cerca de 850 pessoas.
Sem virar a página rápido demais
Como se não bastasse, na década de 1980, a “guerra suja” na qual estavam implicados integrantes do primeiro escalão do governo socialista de Felipe González — seu ministro de Interior foi condenado pelos Tribunal Supremo e a pena foi confirmada pelo Constitucional — era praticada pelos denominados Grupos Antiterroristas de Liberação (GAL), formados por paramilitares, que sequestravam e assassinavam membros do ETA, simpatizantes, mas também civis que nada tinham a ver com o terrorismo. De toda esta brutalidade deve sair a expurgação.
— Para isso, a autocrítica é fundamental — afirma Jonan Fernández, secretário geral para a Paz e a Convivência, órgão subordinado à Presidência do Governo Basco. — Muitas vítimas nos dizem: “Não preciso que me peçam perdão. O que preciso é que me digam que o que fizeram a meu filho, a meu marido, ou a meu pai, foi injusto”.
Partindo do princípio que todas as violações de direitos humanos devem ser denunciadas com firmeza, inclusive as de tortura policial, e tomando o cuidado de que a violência dos GAL não possa ser justificada pela do ETA, nem vice-versa, o governo regional tem impulsado políticas de reconhecimento, como vítimas, de todos os afetados pela brutalidade no conflito basco. A partir desta base, a da igualdade e não discriminação entre vítimas — criticada pelo conservador Partido Popular, à frente do governo espanhol em Madri — vão sendo concebidos planos de conciliação da sociedade basca. Neste sentido, a Praça da Memória abre um canal para compartilhar sentimentos. Quem não quiser falar, pode dar a cara, durante sete segundos, e mostrar o que sente através de sua expressão facial. E quem não quiser se expor assim, pode subir, no site, uma proposta ou um depoimento escrito, de até mil caracteres. Em resumo: de alguma maneira, deixar fluir.
Fernández defende, com o projeto das gravações em celular, que a memória é de todos, e não deve ser imposta por decreto, mas tampouco deve servir para justificar a violência.
— Vivemos uma situação de grande divisão política, agravada pelo trauma da violência. Os desgarros na convivência e as feridas abertas devem ser curados adequadamente. É um assunto muito complexo. O sofrimento deve ser reconhecido, valorizado e, de alguma maneira, reparado em prol de um futuro saudável. Se não trabalhamos o passado, as feridas tendem a reabrir — afirma Jonan Fernández.
Desde que, há quase quatro anos, o ETA declarou um cessar-fogo definitivo, houve uma espécie de alívio coletivo, por já não viver a tensão e o temor constantes de que se produzissem, a qualquer momento, um atentado, ou um sobressalto por uma situação violenta. Este descanso coincidiu com a forte crise econômica. A prioridade, então, que antes era procurar uma solução ao conflito, passou a ser a luta contra o desemprego.
— Com a crise, as feridas foram postas de lado e isso não é bom. Nossa tese é que é muito positivo que a sociedade queira olhar para frente, mas há um componente de risco querer virar a página rápido demais, sem esclarecer muito bem nem tentar sarar o que ficou no passado — opina Fernández.
Para isso, o governo basco, segundo Fernández, se empenha em um Plano de Paz, do qual fazem parte diferentes iniciativas para promover uma normalização da convivência política e social, tendo como base uma análise crítica do passado, elucidando vulnerações aos direitos humanos: atentados terroristas sem esclarecer, torturas policiais ou o padecimento de vítimas que não chegaram a sofrer atentados, mas viveram ameaçadas durante anos.
— O passar do tempo ajuda a suavizar as tensões, mas as políticas públicas devem contribuir para que os ódios, os ressentimentos, os rancores possam ser canalizados de maneira positiva — defende Fernández.
Outros passos à frente, no entanto, são esperados, vindos de diferentes direções. Mas nunca chegam. Por um lado, o ETA não entrega seu arsenal. Por outro lado, os governos central e regional não compartilham uma política de desarmamento.
— Há mais divisões do que consensos. O nosso grande desafio é justamente promover consensos básicos — diz Fernández.