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Protesto de migrantes que participaram do Fórum Social do Mercosul, em Foz: facilitação do trabalho em países do bloco ainda não foi regulamentada | Christian Rizzi/Gazeta do Povo
Protesto de migrantes que participaram do Fórum Social do Mercosul, em Foz: facilitação do trabalho em países do bloco ainda não foi regulamentada| Foto: Christian Rizzi/Gazeta do Povo

Opinião

"Integração não ocorre apenas pelo econômico"

O Mercosul, fundado em 1991 por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, tem avançado no processo de integração regional. O setor de maior desenvolvimento é o comercial. Contudo, uma integração plena não acontece apenas pela via econômico-comercial, mas sobretudo pela política, social e cultural, incluindo a educação e a construção de infraestrutura para a integração física (estradas, pontes, redes de energia e telecomunicações).

Os dirigentes do Mercosul demonstram ter consciência disso ao buscar o aprofundamento em todos os aspectos da integração por meio da criação do Mercosul Social, Cultural, Educacional, ainda o Fórum Social do Mercosul, o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), o Sistema de Solução de Controvérsias e o Tribunal Permanente de Revisão.

Por incorporar aspectos além do comercial, o Mercosul, entre os mais de 200 blocos e acordos regionais e bilaterais registrados na Organização Mundial do Comércio, é considerado um dos que mais avançam em integração. Contudo, as instituições do Mercosul não têm poder de decisão, sendo este reservado aos chefes de Estado. Por isso, o avanço é lento e está sujeito à conjuntura e ao governante do momento. Desta forma, o bloco é considerado pouco institucionalizado.

São muitos os desafios que o Mercosul deve superar para atingir uma verdadeira integração, com coesão, inclusão social e com redução das assimetrias entre os países membros. O Brasil, sendo o maior país do bloco, também tem responsabilidades maiores e não pode se subtrair de sua liderança natural.

José Ricardo Martins, especialista em Geopolítica.

Os presidentes dos países membros do Mercosul celebraram os avanços na integração do bloco representados pela assinatura de acordos como o Estatuto da Cidadania, durante a 40.ª cúpula entre os quatro países membros e demais associados, encerrada nesta sexta-feira em Foz do Iguaçu. O documento prevê a unificação do cadastro de placas de veículos e do registro civil de cidadãos. Outra medida adotada pela reunião de presidentes foi o início das negociações de um acordo de livre comércio com Síria, Autoridade Palestina e Emirados Árabes.

Analistas consultados pela Gazeta do Povo questionam se agora o bloco avançará para abordar questões realmente sensíveis.

"Esses temas [decididos durante a cúpula] são marginais, e justamente por isso os países membros conseguem discutir sobre eles e chegar a resoluções", pondera o coordenador do núcleo de pesquisa em Relações Internacionais da Universidade Federal do Paraná, Alexsandro Pereira. "Há outros temas que poderiam fazer o bloco avançar em termos de cidadania, mas cuja discussão é mais difícil."

Entre eles, estão questões práticas como a facilitação jurídica para cidadãos de um dos quatro países trabalharem em vizinhos do Mercosul. Além de ainda não haver regras nem direitos, existe a natural barreira cultural, que faz com que qualquer estrangeiro seja visto como um "competidor" a mais.

A cessão de soberania pelos Estados de forma a fortalecer o Parlamento do Mercosul é outra "pedra no sapato" dos negociadores regionais. Enquanto ela não ocorrer, sustentam analistas, será impossível integrar.

Finalmente, o livre comércio dentro do bloco, após 20 anos de sua criação, ainda depende da uniformização de regras tarifárias, tributárias e até do controle da inflação.

Leia abaixo a opinião de especialistas sobre os passos que ainda faltam percorrer para que a integração saia definitivamente da utopia para a realidade.

Trabalho

Uma das questões consideradas fundamentais por analistas para a real integração do Mercosul é a possibilidade de cidadãos de um país do bloco trabalharem livremente em um dos outros três países membros. Hoje, o cidadão argentino, por exemplo, encontra no Brasil as mesmas condições que qualquer outro estrangeiro.

Além da barreira jurídica, existe a cultural. Quem quer um estrangeiro competindo por uma vaga de trabalho? "As barreiras são estabelecidas pelos próprios residentes locais que não desejam novos competidores", pondera o professor Alexsandro Pereira.

O economista e reitor da Universidade Positivo, José Pio Martins, destaca que, levando em consideração esse fator, a integração dos mercados de trabalho poderia até ocorrer – mas num momento de altos índices de emprego.

Direitos civis

Apesar de muito celebrada e de conferir uma "aura" de integração ao bloco, a unificação de placas de veículos e carteiras de identidade não chega a representar novos direitos civis e sociais aos cidadãos do Mercosul. Para isso, os Estados precisariam promover uma discussão muito mais profunda, de forma a oferecer paridade de direitos aos cidadãos dos demais países.

"Um cidadão argentino que deseja morar no Brasil será tratado como estrangeiro com direitos limitados ou os direitos de cidadãos brasileiros lhe serão estendidos? Ele terá acesso a seguro desemprego, saúde pública e educação?", questiona o professor Alexsandro Pereira.

Hoje, a circulação entre os países é facilitada – não é exigido o passaporte –, mas residentes oriundos de outros países do Mercosul não recebem tratamento diferenciado em relação a outros estrangeiros.

Instituições

A "vida em bloco" exige dos Estados membros a gradual cessão de soberania em prol da integração regional. No Mercosul, seria fundamental que os países membros aceitassem perder parte de sua autonomia para fortalecer instituições supranacionais, como o Parlamento do Mercosul. Hoje, a função do órgão é meramente consultiva, visto que ele não possui poder decisório – qualquer matéria concordada precisa ser aprovada pelos congressos dos quatro países membros.

É por essa exigência que a Venezuela ainda não foi aceita como membro do bloco, já que o Legislativo paraguaio vem adiando a votação do tema.

Agora, com a decisão de eleger um alto representante do bloco para auxiliar nas negociações e representar o Mercosul internacionalmente, surge a expectativa de que os países se alinhem mais facilmente sob esta liderança. "Dependerá dos poderes que lhe serão concedidos e também de quem ocupará o cargo", avalia o professor Alexsandro Pereira, para quem a figura do presidente Lula seria interessante para o bloco, pela facilidade em obter consensos e pela experiência com negociações. Mas o brasileiro descarta a tarefa. "Posso contribuir sem ocupar um cargo. Eu não preciso de cargo para contribuir, só preciso de motivação", afirmou Lula.

Comércio

Apesar dos recentes avanços para eliminação da cobrança dupla de tarifas externas dentro do Mercosul, enquanto cada país estiver aferrado às suas regras comerciais, será difícil falar em liberdade comercial. Para chegar a ela, o economista Pio Martins lista três passos. "Primeiro, é preciso harmonizar a política tributária, o que é muito difícil porque cada país tem um sistema diferente. Depois, vêm as regras não tarifárias, como fiscalizações para entrada de cargas animais pelas fronteiras etc. O terceiro passo seria harmonizar a inflação dos países integrantes, o que afeta a estabilidade da importação e exportação de mercadorias", explica.

Ele acrescenta que a cúpula foi no caminho certo ao decidir pela proteção de investimentos diretos – para evitar novos episódios como a tomada de refinarias da Petrobras na Bolívia. "É preciso que haja a garantia de que governos não venham a confiscar bens por uma questão ideológica", diz.

Infraestrutura

Para o professor de História da América Latina do UniCuritiba, Renato Carneiro, a assimetria entre os países membros do Mercosul ainda impede que o bloco tome medidas que conduzam a uma real integração – e a área em que os desníveis ficam mais claramente expostos é a infraestrutura.

"Precisamos avançar na instalação de estradas, abastecimento de energia, portos, estradas de ferro que atendam todo o continente. Isso permitiria evoluir para uma economia muito mais voltada ao crescimento conjunto", avalia. "A integração é sonho enquanto não pudermos investir em condições semelhantes."

Por outro lado, o fato de os países apresentarem realidades bastante díspares faz com que qualquer decisão rumo à integração, ainda que pequena, represente um avanço, analisa Carneiro.

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