A terceira encíclica do papa Francisco, Fratelli tutti (“todos irmãos”), é um chamado à redescoberta da fraternidade e da amizade social, presentes no subtítulo do texto assinado no sábado, dia 3, diante da tumba de São Francisco de Assis, e divulgado pelo Vaticano neste domingo, quando se comemora a festa litúrgica do santo. São Francisco inspirou a escolha do nome papal de Jorge Mario Bergoglio após sua eleição, em 2013, e na encíclica o pontífice recorda a visita do santo ao sultão Malik-al-Kamil, no Egito, na época das Cruzadas, fazendo uma alusão a seu próprio encontro com o imã Ahmad Al-Tayyeb, em 2019 – vários dos temas abordados por Francisco na encíclica remetem ao diálogo que os dois líderes tiveram durante a visita papal a Abu Dhabi, no ano passado.
A grande crítica que Francisco faz na Fratelli tutti, e que será desmembrada em vários outros comentários ao longo do texto, se dirige ao individualismo exacerbado dos tempos atuais, que apagou a noção de bem comum como um objetivo a ser buscado por toda a humanidade. Longe de defender forma alguma de coletivismo – que será rejeitado explicitamente em certos pontos da encíclica –, o papa sugere o abandono da busca desenfreada pela satisfação individual à custa de todos os demais, que deve ser substituída pela redescoberta da noção de fraternidade como chave para superar uma série de problemas modernos. Francisco os descreve retomando alguns temas que lhe são muito caros desde o início do pontificado, como a “cultura do descarte”, que tira dos seres humanos sua dignidade intrínseca para avaliá-los com base em sua utilidade. O aborto, o desprezo pelos idosos, a mentalidade antinatalista, o racismo e a miséria são citados pelo papa como exemplos dessa postura, que cega as pessoas a desperdícios mais corriqueiros, mas também graves, como o de alimentos.
“Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência.”
Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti.
Uma série de outras atitudes e tendências leva o ser humano a fechar os olhos para os demais e concentrar-se apenas em si mesmo. Francisco cita como exemplos a extrema polarização política, que leva as pessoas a desrespeitar e até “cancelar” os demais pelo simples fato de pensarem de forma diferente; o ódio aos migrantes; a exploração irresponsável dos recursos naturais – outro tema importante do pontificado de Francisco –; certas formas de liberalismo econômico que deixam para trás os mais pobres e absolutizam direitos que são secundários, como a propriedade, cuja “função social” é explicada pelo papa em termos bem distantes daqueles empregados pelas esquerdas; e o consumismo exacerbado. Tais atitudes, escreve o papa, “esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade, e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos”. Francisco denuncia, assim, a “ilusão enganadora” de “considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco”.
Ser bons samaritanos para todos
Francisco propõe, para reflexão, a parábola evangélica do bom samaritano, na qual Jesus redefiniu, para os judeus que o questionavam, o conceito de “próximo” ao qual se devia amar: não mais apenas aqueles a quem se era ligado por laços de família ou amizade, mas também o desconhecido e até mesmo aquele que tendemos a ver com desconfiança. Na parábola, o judeu vítima de bandidos e deixado à beira da estrada é ignorado por outras pessoas, incluindo um sacerdote, para ser socorrido por um samaritano, membro de um povo que os judeus da época de Jesus viam com desprezo. “Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano”, pede o papa, acrescentando que é justamente a omissão de muitos, como os personagens da parábola, que permite a perpetuação de situações de violência.
O trabalho de redescobrir o bem comum e o que o papa chama de “amor universal” só pode ser possível, segundo Francisco, caso haja consciência da existência de verdades morais objetivas. Francisco retoma um tema muito caro a seu antecessor, Bento XVI, o do relativismo moral, segundo o qual não existem verdades objetivas, mas apenas uma série de concepções que, mesmo diametralmente opostas, estão em pé de igualdade na arena das ideias. Se cada um tem sua própria noção do bom e do justo, e se ela não pode ser questionada pelos demais, torna-se impossível delimitar um objetivo comum e o próprio diálogo fica inviabilizado, afirma o papa. “Uma sociedade é nobre e respeitável nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais”, que “não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão” – ou seja, não são mero fruto de um consenso social obtido em determinado momento e que pode ser alterado no futuro, mas são o resultado da reflexão sobre a natureza humana. Isso não significa uma rejeição do pluralismo de ideias, mas o reconhecimento de que o debate público não é mero choque de opiniões inamovíveis e idênticas em valor, mas esforço conjunto para se atingir aquelas verdades objetivas.
“A política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro.”
Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti.
Citando Vinicius de Moraes, o papa quer uma nova “arte do encontro”. Pessoas, sociedades e nações devem se abrir ao outro, reconhecer sua dignidade, promover o perdão e a reconciliação – sem com isso renunciar a lutas que são legítimas, nem à defesa dos próprios direitos –, rejeitando individualismos, tribalismos e nacionalismos que levaram ao atual “mundo fechado”. E termina lembrando que as religiões são peça fundamental na construção dessa fraternidade e amizade.
Pandemia pode ser divisor de águas para o bem ou para o mal, adverte papa
Ainda que o papa já tivesse em mente muitos dos temas da encíclica há algum tempo, a pandemia de Covid-19 é descrita pelo pontífice como um evento que pode despertar a mudança que ele pede no texto, embora Francisco também reconheça o risco de o coronavírus se tornar um divisor de águas para o mal. Se no início ela “despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos”, afirma Francisco, há também a possibilidade de, uma vez superada a doença, a sociedade “cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta”.
Quando a pandemia acabar, diz o papa, “oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’. (...) Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos”. Se essa noção de fraternidade não for recuperada, “o princípio ‘salve-se quem puder’ traduzir-se-á rapidamente no lema ‘todos contra todos’, e isso será pior que uma pandemia”. Fratelli tutti é um receituário para que isso não ocorra.
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