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Clichy-sus-Bois. O nome evoca um cenário idílico, ao lado dos bosques. Mas Clichy é selva de pedra, mesmo. Uma seqüência de conjuntos habitacionais – que deviam ser bonitos quando novos –, sujeira, crianças brincando em campos de terra e pichação. Grafite, diriam alguns, arte. Uma poluição visual que nos acompanha pelas portarias dos prédios, corredores, elevadores e batentes das portas. Nomes de gangues.

"Tenha cuidado, hoje já quebraram a câmera da Al Jazeera aqui e roubaram o equipamento da TV irlandesa", alertam três simpáticos velhinhos, túnicas africanas coloridas, pés descalços no verão que roubou espaço da primavera.

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"Quem quebraram?", brinco, já um pouco assustada com a propaganda do lugar.

"Uns jovens", é a resposta vaga que recebo.

Foi a segunda advertência do dia. Poucos minutos antes os diretores de uma associação montada em honra aos dois jovens mortos eletrocutados no frio outono de 2005 – acendendo o pavio de uma rebelião social que tomou conta de Paris durante vários dias – se recusaram a sair às ruas do bairro comigo. Somos muito ameaçados.

"Por quem?"

"Uns jovens revoltados."

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A associação fez da campanha eleitoral sua primeira missão. Bateu de porta em porta pedindo a esses franceses – sim, quase todos são legais, nascidos na França, mas de famílias que vêm principalmente do Norte da África e do Oriente Médio, alguns da África negra– que se registrassem para votar. Movimentos assim pelo país adicionaram um milhão e cem mil eleitores nos números de domingo. E duvido que algum voto vá para Le Pen ou Sarkozy.

Le Pen é o candidato de extrema direita que chegou ao segundo turno em 2002 com um discurso racista radical. Ele já foi condenado por racismo e anti-semitismo, mas a lei de liberdades francesas mantém o espaço para que ele continue se candidatando e tornando público seu ódio racial. Em 2002 Jacques Chirac fez 82% dos votos no segundo turno. Sinal de que, no fim, o bom senso francês prevaleceu.

Este ano, só no último instante ele conseguiu se candidatar porque o concorrente da direita, Nicolás Sarkozy, o ajudou a conseguir as assinaturas necessárias para registrar a candidatura.

Sarkozy disse que fez em nome do debate. Mas está de olho nos votos de Le Pen. O radical agradeceu e mandou bala:

"Eu sou o candidato da terra. Sarkozy é um filho da imigração!"

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Sarkozy pai era um nobre húngaro. A mãe, descendente de judeus gregos. Nicolas cresceu em Neully sur Seine, uma cidade colada em Paris, que tem o metro quadrado mais caro do que os melhores arrondissements (distritos) da capital. Foi prefeito da cidade e é adorado lá. Mas, segundo um de seus biógrafos, foi maltratado na infância pelos colegas católicos conservadores.

Quando Clichy-sus-Bois pegou fogo em 2005, Sarkozy era Ministro do Interior, que aqui é também uma espécie de ministro da segurança interna. Disse que limparia a escória com uma máquina de vapor quente. Ninguém esquece. O ódio dele na periferia cresce, e a popularidade entre os conservadores também.

Volta e meia um jovem da periferia aparece na TV dizendo que mataria Sarkozy. Um deles disse ao jornal "The New York Times": "Eu o mataria, iria pra cadeia. E quando fosse solto, seria um herói".

Olho à minha volta em Clichy. Uma mulher vestida com uma burca preta passa por mim. Nossos olhos se cruzam e ela foge do meu olhar curioso. À minha frente um conjunto que exibe a arquitetura da classe média baixa brasileira e a manutenção de uma favela vertical. Vou até um grupo de tunisianas que banham os filhos ao sol. Usam túnicas longas, lenços floridos na cabeça.

"Nem pense que vou mostrar minha cara na TV, diz ela. Não quero saber nem de foto. Nem eu, nem nenhuma mulher aqui pode falar com você."

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"Mas a senhora votaria numa mulher? Votaria em Segolene Royal? "

"Se o meu marido decidir..."

Diferente, esta França. E estamos a apenas uma hora e meia da torre Eiffel.

Há grupos de homens sentados, conversando. Só entre eles. Não querem papo com os de fora. Nestes conjuntos o desemprego é de 50% – contra uma média de 8% no país.

A economia da França é a mais lenta entre as grandes do bloco do euro. Cresce só 2% ao ano. Os investimentos públicos estão caindo, a dívida crescendo.

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A França deixou de ser um país que cria oportunidades. E vive com os problemas que vieram como conseqüência. Por ironia, os mais preparados – 4 milhões de jovens com curso superior, segundo a revista "Time" – deixaram o país em busca de empregos principalmente na Inglaterra, Estados Unidos e Japão. Quem vai à escola num Banlieu (palavra que define a periferia por aqui), fica no Banlieu.

Assassinato

Dois paquistaneses param e querem conversar. Mas não falam francês. Um deles, num italiano truncado, me conta que mora em Milão e veio porque o primo foi assassinado num assalto. Para roubar o celular, deram com um taco de beisebol na cabeça dele. Sigo os dois até um apartamento. Há pelo menos 30 homens no espaço de duas peças. Eles tinham acabado a oração da tarde. Rezavam pelo parente morto. Os paquistaneses não têm desemprego: quem chega vai direto pra obra ao lado. Obra que não aceita os negros.

Entre o medo, a tristeza e a fragilidade de quem vive a meio mundo de casa, eles reclamam que a polícia nem deu bola pro assassinato. Nem foi atrás dos bandidos, identificados por eles. Como ninguém na rua tomou uma atitude quando o primo foi assaltado e morto.

"Ele ficou ali, sangrando, sozinho, e o povo passando sem fazer nada."

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O medo paralisa os moradores de Clichy-sus-Bois. E esse medo se espalha pela França, fazendo do racismo um dos principais debates da campanha.

"O socialismo botou a gente nessa enrascada, nunca ofereceu soluções", reclama um dos líderes comunitários.

"E a direita não nos considera franceses, não importa há quantas gerações estamos aqui. Eu não tenho dúvida da minha identidade francesa", completa. "Quero que ela seja reconhecida por todos."

Domingo os franceses votam no primeiro turno. Em Clichy, deve haver recorde de comparecimento. Segolene Royal e Nicolas Sarkozy devem ir para o segundo turno. François Bayrou, de Centro, está logo atrás. Mas em 2002 nenhuma pesquisa previu Le Pen no segundo turno. E as próprias pesquisas dão a pista do quanto podem estar erradas: 30% dos eleitores ainda não decidiram o voto.