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Sabe-se desde a vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa, em 1949, que o regime de Pequim promove uma perseguição e vigilância radicais de seus cidadãos dentro das suas fronteiras. Investigações recentes, porém, mostram o alcance dessa caça às bruxas por parte da China também em outros países.
Na semana passada, o procurador-geral dos Estados Unidos, Merrick Garland, divulgou a existência de um processo na Corte do Distrito Leste de Nova York, no qual o governo americano apresentou acusações contra sete pessoas que supostamente trabalhavam para Pequim por ameaçar, assediar e forçar um residente dos EUA a retornar à China.
Segundo Garland, dois dos acusados foram presos na semana retrasada. “A acusação alega que os réus, trabalhando sob a direção do governo da República Popular da China, se envolveram em uma campanha de assédio, ameaças, vigilância e intimidação com o objetivo de coagir a vítima a retornar à China”, afirmou o procurador-geral em entrevista coletiva.
Garland explicou que os réus ameaçaram e assediaram familiares da vítima tanto nos Estados Unidos quanto na China. “O governo da China forçou um sobrinho da vítima a viajar para os Estados Unidos para transmitir as ameaças do regime ao filho dela. Os réus ameaçaram a vítima [com processos], dizendo que ‘voltar e se entregar é a única saída’”, explicou o procurador.
“Eles deixaram claro que o assédio não iria parar até que a vítima voltasse para a China”, disse Garland.
O processo divulgado pelo Departamento de Justiça do governo americano corrobora as revelações de um relatório publicado em setembro pela ONG espanhola de direitos humanos Safeguard Defenders.
Segundo o estudo, entre abril de 2021 e julho deste ano, as forças de segurança chinesas “persuadiram” 230 mil pessoas que haviam deixado a China a retornar ao país “voluntariamente” – embora Pequim alegue que o objetivo é fazer com que acertem contas com a Justiça, há vários relatos de perseguição a pessoas que não cometeram crime algum.
Muitas haviam simplesmente se mudado para nove países onde Pequim determinou que é proibido morar, a menos que o cidadão tenha “bons motivos”: Turquia, Emirados Árabes Unidos, Mianmar, Tailândia, Malásia, Laos, Camboja, Filipinas e Indonésia. O argumento é que esses países têm “sérios” problemas de fraudes no setor de telecomunicações e de fraudes em geral.
A Safeguard Defenders citou o caso de uma mulher chinesa que morava na capital cambojana, Phnom Penh, e que em março deste ano foi notificada pelas autoridades a retornar ao país. Ela alegou que não era suspeita de crime algum e estava apenas trabalhando como dona de um restaurante no Camboja, mas a China argumentou que ela tinha a obrigação de voltar porque o país do sudeste asiático estava na lista de “proibidos”.
No início de maio, o nome da mulher foi colocado numa lista de suspeitos de fraude na área de telecomunicações e as autoridades ameaçaram cortar a água e a energia elétrica da casa da mãe dela.
A residência da mãe foi pichada com a mensagem “casa de uma fraudadora”, um aviso da polícia foi afixado na fachada do imóvel e a mãe foi orientada pelo conselho do vilarejo a persuadir a filha a voltar. A Safeguard Defenders não soube informar se a mulher que estava no Camboja retornou posteriormente à China.
Segundo a ONG espanhola, outros métodos comuns para forçar o retorno “voluntário” são negar aos filhos do “alvo” o direito à educação na China e ameaças de processos por “culpa por associação” (semelhante ao modelo norte-coreano) contra membros da família que residem no território chinês.
Os parentes que não ajudam a exercer pressão para o retorno são investigados e punidos por autoridades policiais ou pela polícia interna do Partido Comunista.
Descaso com “processos adequados”
A Safeguard Defenders apontou que Pequim tem ao menos 54 “centros de serviço policial no exterior” que ajudam nesse trabalho de perseguição a chineses estabelecidos em outros países. Dois deles ficam no Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Na semana passada, o programa de notícias holandês RTL Nieuws e o coletivo de jornalistas investigativos Follow the Money publicaram uma investigação que aponta que a polícia chinesa mantém dois desses escritórios na Holanda, em Amsterdã e Roterdã, desde pelo menos 2018.
Essas unidades foram constituídas sem informar o governo holandês, e “há fortes indícios de que as agências são usadas para pressionar os dissidentes chineses”, de acordo com os dois órgãos de imprensa.
A Safeguard Defenders enfatizou no seu relatório de setembro que a China ignora mecanismos bilaterais para o retorno de cidadãos, já que a utilização de métodos irregulares lhe permite burlar regras internacionais, como as convenções das Nações Unidas sobre tortura e para proteção de refugiados.
“[...] é flagrante o descaso com o uso de canais e processos adequados nas relações internacionais. Apesar da insistência da China no estabelecimento de tratados bilaterais de extradição ou outros mecanismos de cooperação judicial – que servem tanto para um propósito específico de propaganda para legitimar o sistema judicial controlado pelo Partido Comunista Chinês, quanto para alimentar o fator medo sobre o número crescente de indivíduos que fogem da China –, raramente usa esses procedimentos legais internacionais”, alertou a ONG espanhola.
Para piorar a situação, a Safeguard Defenders lembrou que uma nova lei chinesa, que entrará em vigor em 1º de dezembro, “estabelece total extraterritorialidade sobre chineses e estrangeiros globalmente para certos crimes (fraude, fraude em telecomunicações, golpes online etc)”. Ou seja: a perseguição em outros países vai se intensificar e pode mirar também cidadãos de outras nacionalidades.