Relatório da Anistia Internacional destacou que guerra na Etiópia foi a mais mortal do mundo no ano passado, mas permaneceu distante da “atenção global”| Foto: Reprodução/BBC
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O lançamento do relatório anual da Anistia Internacional sobre a situação global dos direitos humanos nesta terça-feira (28), em Paris, relembrou um dos conflitos mais violentos de 2022: a guerra civil na Etiópia, que terminou em 2 de novembro, dois dias antes de completar dois anos. “O conflito mais mortífero em 2022 foi na Etiópia”, mas permaneceu longe da “atenção global”, afirmou a secretária-geral da AI, Agnès Callamard.

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A guerra civil teria matado, segundo estimativas da AI, “centenas de milhares de pessoas, fazendo dela um dos conflitos mais mortais da memória recente”. Segundo o relatório, “grande parte dessa carnificina foi ocultada, distribuída em uma campanha amplamente invisível de limpeza étnica contra os tigrinos no Tigré Ocidental [região etíope]”.

Origens do conflito

Abiy Ahmed assumiu como primeiro-ministro da Etiópia em 2018, tirando o partido Frente Popular de Libertação do Tigré (TPLF, na sigla em inglês) do centro do poder, onde estava havia quase três décadas. Apesar do país ter atingido estabilidade e prosperidade nesse tempo, conforme reportou a BBC, havia um descontentamento em relação à democracia e aos direitos humanos no país, o que levou a manifestações contra o governo e ao apontamento de Ahmed como primeiro-ministro.

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Ahmed, ao promover reformas, encontrou resistência por parte do TPLF, que as viram como tentativas de centralização do poder, gerando uma crise política. Em setembro de 2020, o Tigré desafiou o governo central ao propor suas próprias eleições regionais. Ambos os lados se consideravam “ilegítimos”.

Em outubro seguinte, o governo cortou os repasses e as relações com a região. Ahmed afirmou que o Tigré havia passado dos limites. “O governo federal é, portanto, forçado a um confronto militar”, disse.

O conflito começou em 4 de novembro de 2020, quando o primeiro-ministro ordenou uma ofensiva militar contra forças regionais na região do Tigré, e se estendeu por quase dois anos praticamente fora dos olhares do mundo.

Atrocidades

De acordo com o relatório da Anistia Internacional, desde o início do conflito, em 2020, o governo impôs restrições à ajuda humanitária ao Tigré. Segundo a comissão internacional de especialistas em direitos humanos da ONU na Etiópia, o governo também utilizou a fome como um método de guerra. “E o fechamento dos serviços bancários e de comunicações agravou a crise humanitária”, destacou o documento da AI.

Dezenas de milhares de pessoas fugiram, buscando refúgio em outros países. No Sudão, só em 2022, foram 59,8 mil pessoas. De acordo com a AI, “a Arábia Saudita ‘devolveu à força’ dezenas de milhares de migrantes etíopes depois de detê-los arbitrariamente em condições desumanas porque não tinham documentos de residência válidos, submetendo-os a tortura e outros maus-tratos”.

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Um relatório conjunto da Human Rights Watch e da Anistia Internacional, divulgado em abril de 2022, depois de um ano de trabalho, concluiu que autoridades das regiões do Tigré Ocidental e de Amhara eram “responsáveis por uma campanha de limpeza étnica, por meio de crimes contra a humanidade e crimes de guerra”, tendo como alvo tigrinos civis do Tigré Ocidental, desde o início do conflito.

Segundo a Anistia Internacional, houve detenções em massa em 2022, tendo como alvo os tigrinos (etnia de cerca de 7% da população etíope) em várias partes do país. “Milhares foram presos em locais oficiais e clandestinos sem supervisão do Judiciário sobre suas prisões e sem acesso a advogados”, apontou um trecho do relatório. Também foram reportados assassinatos de civis, inclusive em massa, por forças de segurança e grupos armados. “Um vídeo que circulou nas redes sociais mostrou três pessoas sendo queimadas vivas”, destacou o relatório.

O documento da AI, que fala sobre 2022, ainda mencionou estupro e violência sexual praticados pelas forças tigrinas na região de Afar como parte do conflito, com as vítimas sendo abandonadas por seus maridos e sendo estigmatizadas pela sociedade. E pelo menos 29 jornalistas e profissionais da mídia que atuavam na região do Tigré foram presos no ano passado por “colaborar com o inimigo”, apontou o documento.

Acordo de paz

O acordo, assinado em 2 de novembro de 2022, colocou um ponto final no conflito que completaria dois anos em 4 de novembro. Além de pedir a suspensão imediata dos combates, as partes se comprometeram a um fluxo de ajuda humanitária desimpedido.

“O acordo de paz melhorou a situação, permitindo que agências humanitárias entregassem mais ajuda a áreas de difícil acesso durante as hostilidades. Isso significa que mais pessoas no norte da Etiópia podem ter acesso a serviços críticos agora e [serem] acompanhadas em busca de soluções”, disse o Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, em uma visita de três dias à Etiópia em fevereiro.

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O acordo também estabeleceu um plano para o relacionamento entre o Tigré e o governo federal, que suspenderia a designação do TPLF como grupo terrorista, e uma administração interina do Tigré – que, em setembro de 2020 havia estabelecido seu próprio governo regional, – deve governar a região até que as eleições sejam realizadas.

Situação atual

Em 20 de março, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, anunciou que os Estados Unidos concluíram que crimes de guerra e crimes contra a humanidade foram cometidos por ambos os lados durante o conflito.

“O reconhecimento formal das atrocidades por todas as partes é um passo essencial para alcançar a paz sustentável. Os maiores responsáveis por essas atrocidades devem ser responsabilizados, incluindo aqueles que ocupam posições de comando”, afirmou Blinken, que esteve em Adis Abeba, capital da Etiópia, onde “celebrou a redução ‘significativa’ das violações dos direitos humanos graças ao acordo de paz firmado entre o governo etíope e a região norte do Tigré”, um pacto apoiado por Washington, informou a agência EFE.

Em 23 de março deste ano, enquanto os olhos do Ocidente continuavam voltados aos mais recentes desdobramentos da guerra da Ucrânia, foram dados os primeiros passos da implementação de um acordo de paz entre os rebeldes do Tigré e o governo central da Etiópia, com o primeiro-ministro instaurando um governo interino no Tigré, comandado por um líder da TPLF, Getachew Reda.

“O presidente interino designado do Tigré recebeu a responsabilidade de formar um gabinete inclusivo, que garanta a representação das várias forças políticas que operam na região”, informou em comunicado o gabinete do primeiro-ministro. No dia anterior, o parlamento do país aprovou a retirada da designação de grupo terrorista à TPLF.

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Além das consequências da guerra civil, o povo etíope vive um período de seca provocado pelo fenômeno La Niña e piorado pelas mudanças climáticas, reportou a revista The Economist.

Segundo estimativas da ONU, 20 milhões de pessoas sofreram de insegurança alimentar na Etiópia no ano passado. A seca na região afeta principalmente a Somália, onde cerca de 43 mil pessoas morreram em 2022 (metade delas, crianças), além de Djibouti, Etiópia e Quênia. É o mais longo período de seca na região do Chifre da África em 40 anos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]