Milhares de migrantes desembarcavam todos os dias nas praias da Grécia. Nos portos da Itália, uma imensa quantidade de pessoas chegava todas as semanas. Todos os meses, centenas de milhares atravessavam as fronteiras da Alemanha, da Áustria e da Hungria.
Mas isso foi em 2015. Três anos após o pico da crise migratória na Europa, as praias gregas estão comparativamente calmas. Desde agosto, os portos da Sicília andam relativamente vazios. E na remota ilha de Lampedusa – o ponto mais meridional da Itália que já foi a linha de frente da crise –, o centro de detenção de migrantes fica em silêncio por longos períodos. Quem visitou o acampamento no último mês ouviu apenas o som dos pássaros. "É o período mais tranquilo desde 2011", diz o prefeito da ilha, Salvatore Martello. "O número de chegadas diminuiu drasticamente."
Grande paradoxo
É o paradoxo da crise migratória na Europa: o número real de migrantes chegando está de volta ao nível anterior a 2015, ao mesmo tempo em que as políticas de migração continuam a abalar o continente. A questão poderia acelerar o fim político da chanceler alemã, Angela Merkel, enquanto a União Europeia se esforça para montar uma política de migração coerente.
A queda abrupta das chegadas de migrantes não significa que a Europa esteja livre de desafios reais. Os países ainda estão lutando para absorver as cerca de 1,8 milhão de pessoas que chegaram pelo mar desde 2014. A ansiedade pública aumentou em países como a Alemanha depois de agressões envolvendo imigrantes, incluindo a morte de um estudante alemão de 19 anos e o ataque terrorista a uma feira de Natal que matou 12 pessoas.
Os líderes ainda têm grandes discordâncias sobre quem deve assumir a responsabilidade pelos recém-chegados: países fronteiriços, como a Grécia e a Itália, pelos quais a maioria dos imigrantes entra na Europa; ou os mais ricos, como a Alemanha, que muitos migrantes tentam alcançar.
O mais surpreendente, porém, é quantos líderes, particularmente em partidos de extrema-direita, continuam a criar com sucesso a impressão de que a Europa é um continente sitiado por imigrantes, mesmo quando os números pintam um quadro muito diferente.
"Nós falhamos em nos defender contra a invasão de migrantes", disse Viktor Orban, o primeiro-ministro de extrema-direita da Hungria, em um discurso feito recentemente. Ele criou uma lei que faz com que ajudar migrantes não autorizados seja crime passível de prisão para os húngaros.
Orban não está sozinho em sua linha dura. Desde junho, Matteo Salvini, o ministro do Interior da Itália, fechou os portos do país para barcos de resgate de instituições de caridade. Horst Seehofer, ministro do Interior da Alemanha, ameaçou rejeitar os refugiados na fronteira sul. E, do outro lado do Atlântico, o presidente Donald Trump alegou, erroneamente, que a migração levou a uma epidemia de crimes na Alemanha.
As táticas parecem ter funcionado. Dados divulgados no mês passado pela União Europeia mostraram que os europeus estão mais preocupados com a imigração do que com qualquer outro desafio social. O partido de Salvini agora lidera as pesquisas italianas, com um aumento de 10 pontos percentuais desde as eleições de março. Orban foi reeleito em abril com uma margem maior de votos, depois de uma campanha na qual se concentrou quase que exclusivamente na migração.
Retorno aos níveis anteriores à crise
Mesmo em Lampedusa, Martello ganhou a prefeitura no ano passado prometendo se concentrar mais em questões locais do que em polir a reputação internacional da ilha como um local de refúgio para migrantes. A realidade, no entanto, é que, apesar da retórica, a migração está de volta aos níveis anteriores à crise – e já faz algum tempo.
Mais de 850 mil requerentes de asilo chegaram à Grécia em 2015, com a maioria deles se deslocando para países do Norte da Europa, como a Alemanha. Este ano, pouco mais de 13 mil fizeram essa jornada. Naquele mesmo ano, mais de 150 mil pessoas chegaram à Itália; o número este ano está inferior a 17 mil até agora. Em 2016, quando os pedidos foram mais altos, mais de 62 mil pessoas procuraram asilo na Alemanha, em média, todos os meses. Este ano, essa média caiu para pouco mais de 15 mil – a menor desde 2013.
Em Lampedusa, mais de 21 mil migrantes desembarcaram em 2015. Este ano, o número é inferior a 1.100. O número de chegadas só aumentou na Espanha, de mais de 16 mil em 2015 para pouco mais de 17 mil em 2018. Mas o crescimento ainda é relativamente pequeno – mais pessoas desembarcavam, em uma única semana, na ilha grega de Lesbos no auge da crise do que é provável que cheguem à Espanha este ano.
"É uma crise inventada", afirma Matteo Villa, especialista em migração do Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais. "Os altos fluxos dos últimos anos reforçaram os partidos nacionalistas, que agora estão criando uma crise própria para reforçar pontos políticos fáceis."
Trabalho em silêncio
Salvini e Orban cultivaram o apoio popular criando a impressão de que são os únicos líderes dispostos a tomar as decisões difíceis necessárias para reduzir a migração. No entanto, o establishment europeu, sob pressão de nomes como Orban e Salvini, tem trabalhado em silêncio há algum tempo com os principais guardiões das rotas de migração para a Europa, inclusive com regimes autoritários, para reduzir os números.
Na Itália, o número de chegadas despencou após o antecessor de Salvini ter persuadido várias milícias a deter a indústria de contrabando no norte da Líbia e a manter milhares de migrantes em condições perigosas em centros de detenção improvisados na Líbia. "As medidas tomadas pelo governo anterior, que Salvini tanto criticou, foram efetivas", explica Andrew Geddes, diretor do Centro de Políticas de Imigração do Instituto Universitário Europeu em Florença, Itália.
Ao mesmo tempo, vários governos europeus fizeram tratados de deportação com o Sudão, cujo líder, Omar al-Bashir, foi acusado de crimes de guerra. Um acordo com o Níger ajudou a combater o tráfico no Saara Ocidental. E o mais polêmico, em 2016 os governos alemão e holandês negociaram um acordo da União Europeia com o governo autoritário da Turquia, que levou a uma queda imediata e drástica na migração para a Grécia.
"O paradoxo é que existe essa narrativa de que Merkel abriu as fronteiras da UE, mas no final foi, de fato, Merkel, com ajuda dos holandeses, que negociou o acordo mais efetivo sobre as fronteiras da UE", diz Gerald Knaus, diretor da Iniciativa de Estabilidade Europeia, um grupo de pesquisa com sede em Berlim que propôs o acordo e elaborou suas versões iniciais.
Desafio europeu
Agora, o desafio da Europa é, em grande parte, o processo: como abrigar requerentes de asilo que aguardam decisões sobre seus casos; como integrá-los na economia e na sociedade, se seus pedidos forem aprovados; e como deportá-los se não forem. Esses desafios continuam, e as autoridades ainda não resolveram os problemas dos acampamentos migrantes esquálidos da Grécia, que abrigam cerca da metade dos 60 mil solicitantes de refúgio do país, ou da economia clandestina da Itália, onde muitos dos 500 mil migrantes não autorizados são explorados.
Enquanto isso, os líderes anti-imigração, apesar de estarem capitalizando sobre a questão, não agem de modo unificado. A Itália quer acabar com as leis de Dublin, que estipulam que os requerentes de asilo devem permanecer no país da UE no qual se registraram, e distribuir os migrantes por todo o bloco. Mas os linha-dura, como Orban, Seehofer e o primeiro ministro da Áustria, Sebastian Kurz, recusam-se a dividir os problemas da Itália e da Grécia.
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"Suas propostas são fundamentalmente contraditórias", diz Knaus. "Salvini e os italianos querem se livrar de Dublin e compartilhar os migrantes com a Europa. Os bávaros querem empurrar todos de volta para a Áustria. E Kurz diz que está bem – então vamos mandá-los para a Itália e a Hungria."
E lá longe, em Lampedusa, essa conversa faz com que o debate pareça menos sobre as especificidades da gestão da migração e mais sobre o abismo crescente entre as forças liberais e conservadoras da Europa.
É "uma guerra ideológica", afirma Martello, o prefeito. "A Europa é dividida em dois blocos principais: um defende as fronteiras e o outro está realmente fazendo algo sobre a situação."