Missão de paz circulou no Leste da Ucrania em 2015| Foto: OSCE Special Monitoring Mission to Ukraine

Eu tenho sotaque forte. Já quando cumprimento alguém, a pessoa sempre me pergunta de onde sou. "Da Ucrânia. Da região oriental, não controlada pelo governo", respondo. Da chamada República Popular de Donetsk, de onde voltei depois de uma visita de três meses. 

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Invariavelmente, o que vem a seguir é: "Ah, o que anda acontecendo por lá? Está tendo uma guerra?" - o que indica uma falha de cobertura da imprensa. Escrevemos extensivamente sobre coisas e acontecimentos recentes e estimulantes – e as esquecemos assim que começam a se tornar tediosas. 

Foi exatamente o que aconteceu com a guerra da Ucrânia; então eu respondo: "Bom, continuamos matando, em média, de uma a duas pessoas por dia". 

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Entretanto, o conflito se tornou tão estático que é meio irreal. Dois exércitos, sentado um de frente para o outro, muitas vezes a não mais de trinta metros um do outro. Isso por causa das tréguas firmandas em Minsk, em 2014 e 2015, que impedem que lutem para valer. Só que, sem uma solução política, ninguém pode arredar pé. De vez em quando disparam um contra o outro, geralmente à noite, enquanto os monitores internacionais dormem. Quase sempre é para dar vazão à frustração. 

De uns tempos para cá, entretanto, a violência tem aumentado, mas o mundo nem notou. Acontece ocasionalmente, sem resultar em nenhuma mudança. Aí vem um novo período de banho-maria. 

Conflito previsível e discreto

Uma vez que o confronto é tão ritualizado, previsível e discreto, a vida civil está retornando às proximidades das linhas de frente, onde guerra e paz convivem de forma bizarra e nem sempre harmônica. Cheguei a ver uma escola funcionando a 150 metros do fronte. Para deixar as crianças lá, o ônibus escolar tem que passar por uma rua estreita cheia de minas. Fiquei sabendo de outro colégio que foi atacado em maio. Os vidros de todas as janelas se estilhaçaram com 370 crianças lá dentro. Quatro dias depois, painéis trocados, as aulas foram retomadas. Guerra é guerra, mas é preciso ir para a escola. 

 Eu mesma cheguei a ver gente pescando e fazendo piquenique perto da linha de fogo, fazendo paradas curtas quando começa a troca de tiros – ou, como eles dizem, quando "o barulho fica muito alto". 

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 Um homem que conheço mora no banheiro de sua casa porque é o único cômodo que sobreviveu às balas, morteiros e bombas, muito mais intensos no início da guerra, entre 2014 e 2015.

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O outro está reerguendo sua residência a pouco mais de 1,5 km do aeroporto de Donetsk, onde frequentemente ocorrem escaramuças. Foi atingida cinco vezes, mas a fundação é firme e o dono se mostra otimista. "Por que você está fazendo isso?", pergunto. "Bom, eu já sou um homem de idade e tenho duas filhas. Quero deixar a casa para elas em boas condições, mas não dá para esperar até o fim da guerra. Quem me garante que vou viver até lá?", responde. 

Quando conto essas histórias, o pessoal pergunta se ainda tenho família lá. "Sim, minha família continua em Donetsk." Como é a vida ali? É difícil explicar, mas vou tentar. 

 Quando se pensa em guerra, você imagina terror, ação, gente apavorada tendo que sobreviver a bombardeios e tiroteios; só que lá é diferente. No centro de Donetsk, por exemplo, a vida parece supernormal: cafés hipster, mães empurrando carrinhos, lilases e rosas em flor na primavera. 

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 Os motivos que tornam dura a vida

A vida é dura por outros motivos. O território dissidente da Ucrânia tem cerca de quatro milhões de habitantes tendo que enfrentar escolhas impossíveis. Refém das autoridades oportunistas, a população é considerada fora da lei pelo governo ucraniano – pró-separatismo, composta por cidadãos desleais, cujo pecado foi ter sido tomada de roldão. Mesmo quem vai embora, como eu, continua sendo perseguido pelas acusações de traição e de colaboração. 

 E o resultado é que essas pessoas têm muita dificuldade de receber aposentadoria, ir e vir para/de o que é chamado de "Ucrânia continental", tirar passaporte, trabalhar ou votar. Presas em um pseudoestado com ares de gueto, dividem-se entre as regras obscuras e repressivas de ambos os lados. 

 Um parente meu tem um pequeno negócio em Donetsk, mas acha a situação muito complicada. O governo ucraniano impôs um bloqueio econômico ao comércio local que responde apenas ao Ministério das Finanças da república dissidente. E o sujeito à testa da pasta não é conhecido pelo nome, mas sim pelo pseudônimo: Tashkent. 

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 A cada dois meses, minha avó tem que ir ao território da porção controlada pelo governo para receber sua aposentadoria. E a viagem não é nem um pouco divertida, resumindo-se a um dia inteiro de espera em filas desesperadoramente lentas em um sem número de postos de controle. O povo se reúne em uma rua estreita que divide um campo minado. Uma vez que não há nenhum tipo de estrutura, tem que usar as moitas como banheiro e não é raro serem vítimas das minas terrestres. Dá para evitar tudo isso? Dá, se você viajar com um contrabandista, que paga propina para os agentes e permite que se evite a fila – mas custa o equivalente ao valor da pensão. Você tem que escolher. 

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 A avó de uma amiga minha já nem estava recebendo a aposentadoria porque era muito idosa para aguentar as agruras da viagem. Morreu recentemente. Acontece que a certidão de óbito emitida pelas autoridades separatistas não tem força legal e não há mecanismo que permita ao governo oficial liberar o documento para as pessoas que vivem em território não controlado. Quando minha amiga entrou com uma ação na justiça, o juiz exigiu provas da morte – três testemunhas ou o vídeo do enterro. E assim segue o surrealismo dessa guerra. 

O povo não apoia ninguém

 Não demora para que surja a pergunta final: "E quem é que o povo apoia, os separatistas ou o governo?". Minha resposta decepciona todo mundo: "A maioria não apoia ninguém." É tentador torcer para os mocinhos contra os bandidos em algum conflito na TV, principalmente se a Rússia estiver envolvida, mas quando você se depara com soldados cavando trincheiras no seu quintal, de repente não interessa se são bons ou maus. Só os quer longe dali. 

 As escolhas da vida real não têm nada de políticas. As pessoas optam por ficar na zona de guerra por vários motivos: trabalho, propriedade, idade avançada, sentimentalismo, deficiência. A falta de apoio federal e o estigma de ser um desalojado também fazem da inércia uma atitude sensata. 

 E quem fica espera que, de alguma forma, algo mude, se bem que a esperança aos poucos venha dando espaço para o desespero e o fatalismo. O conflito virou um impasse geopolítico no qual todo mundo parece mais satisfeito com a situação atual do que qualquer solução proposta – quer dizer, todo mundo menos os que pagam o pato. 

 Outro dia, um interlocutor com quem tive uma conversa mais ou menos nessa linha, concluiu nosso diálogo me dizendo: "Para falar a verdade, o pessoal aqui nos EUA está cansado de ouvir falar desse conflito eterno na Ucrânia, contaminado pela corrupção e a falta de vontade política de se chegar a qualquer lugar." 

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 Ao que só pude responder: "Se vocês estão cansados, imagine nós."

*Alisa Sopova é uma jornalista ucraniana freelancer que atualmente está fazendo pesquisa acadêmica no Centro Davis de Estudos Russos e Eurasiáticos de Harvard.

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