No último dia 14, completaram-se seis meses desde que, oficialmente, a Covid-19 chegou ao território africano. Foi no dia 14 de fevereiro que o Ministério da Saúde do Egito confirmou que um cidadão chinês era a primeira pessoa infectada pelo novo coronavírus no país e, por extensão, em toda a África. Àquela altura, já se noticiavam também os primeiros casos na Itália, que, semanas depois, seria arrasada pela doença e passaria a acumular milhares de mortes. Se na Europa a pandemia teve efeitos devastadores, o temor era por uma tragédia ainda maior na África, continente mais pobre do planeta, palco de conflitos internos e que, em um passado recente, sofreu com outras epidemias.
Seis meses depois, o continente de 1,3 bilhão de habitantes soma mais de 1,2 milhão de infectados e 26 mil mortes causadas pela Covid-19. É apenas o segundo com menos registros da doença, atrás apenas da Oceania. A título de comparação, o Brasil, um sexto desta população, tem o triplo de infectados e quatro vezes mais mortos. País africano mais afetado pela pandemia até agora, a África do Sul, com mais de 12 mil óbitos, tem um índice de mortes por milhão de habitantes inferior a Suécia, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá, entre outros.
Afinal, o que explica esse cenário de aparente resistência ao vírus e que fez com que, pelo menos até agora, não se confirmasse uma tragédia anunciada por pesquisadores e autoridades de saúde? Cientistas ainda estão em busca de respostas mais concretas, mas alguns fatores ajudam a entender: o fato de ter uma população jovem, a experiência adquirida no enfrentamento de doenças como o ebola, atuação conjunta entre os países e adoção de medidas mais severas no início da pandemia.
“Enfrentamento é uma maratona”
Uma análise preliminar da Organização Mundial de Saúde (OMS) verificou que o pico da doença, previsto para ocorrer em julho, acabou não se confirmando. Com exceção da África do Sul, que chegou a ter uma média diária de 12 mil casos, mas já assiste a uma queda nas últimas semanas, com média atual inferior a 5 mil. Em grande parte dos países, o que se observa é um crescimento gradual do número de casos, tornando difícil estabelecer um pico específico. “Na África, conter a Covid-19 é uma maratona, não uma arrancada”, disse o diretor regional da OMS, Matshidiso Moeti, em comunicado à imprensa.
De acordo com ele, no início da pandemia foram atingidas as capitais e grandes centros. Agora, o vírus está se disseminando de áreas urbanas para assentamentos e zonas rurais, com densidade populacional menor. “Estamos observando vários surtos locais, cada um com seus próprios padrões e picos de infecção. É reforçando a resposta no âmbito das comunidades que venceremos essa corrida. A resposta à Covid-19 deve ser integrada na estrutura de cada distrito de saúde”, ressalta Moeti.
Entre as explicações para o baixo número de casos registrados no continente está a baixa testagem. No Egito e na Nigéria, países mais afetados pela pandemia depois da África do Sul, a quantidade de testes por milhão de habitantes é de 1,3 e 1,7, respectivamente. Há exceções, como Cabo Verde, Djibuti e Ilhas Maurício, que têm índices de testagem superiores ao do Brasil. Somente a OMS já entregou mais de 2,1 milhões de kits para testagem aos países africanos, além de suprimentos e de fornecer treinamento a aproximadamente 100 mil trabalhadores de saúde.
Ações coordenadas entre os países
Um diferencial da África em relação a outros continentes é o combate à pandemia de forma coordenada entre os governos. Augusto Paulo Silva, pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris-Fiocruz), explica que a União Africana, organização continental que reúne 55 países, tomou a dianteira dessa iniciativa. As ações estão sendo coordenadas pela Africa Centers for Disease Control and Prevention (CDC Africa), agência criada após o surto de ebola que matou mais de 11 mil pessoas entre 2014 e 2016.
“O plano estratégico de resposta é único, foi definido a nível de União Africana e depois se desdobrou para as regiões e os países. Tem uma orientação continental, não é como na América do Sul, que não tem um órgão regional. Tem a OMS Afro também, mas que cobre apenas 47 estados africanos. Mas os dois órgãos colaboram em conjunto para a resposta à pandemia”, explicou Augusto em entrevista à Agência Brasil. No início da pandemia, a União Africana acionou canais diplomáticos e criou um fundo para arrecadar recursos e buscar ajuda para o continente.
A experiência com surtos e epidemias anteriores, como de ebola e cólera, também contribuiu com o trabalho de enfrentamento. “Os países conseguiram se preparar, mas não se prepararam adequadamente porque a parte hospitalar é mais fraca do que em outras regiões do planeta. A parte de unidade de cuidados intensivos, por exemplo, é quase inexistente. O que salvou, antes da chegada dos testes e do isolamento, foi a rede de cuidados de saúde primários, a atenção primária, essa rede que salvou muitas vidas”, acrescenta o pesquisador.
O mistério dos anticorpos
Uma reportagem publicada na semana passada pela revista científica norte-americana Science relata uma série de pesquisas, conduzidas em diferentes países africanos, que apontaram um grande número de pessoas com anticorpos para a Covid-19 – um indicativo de contaminação anterior. Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Médica do Quênia apontou que um em cada 20 quenianos apresentaram anticorpos, número semelhante ao verificado ao final de maio na Espanha, quando já havia 27 mil mortos e o pico da doença começava a cair.
Outra pesquisa, realizada com 500 trabalhadores de saúde assintomáticos do Malaui, indicou que 12,3% deles já haviam sido expostos ao coronavírus. Com base nas taxas de mortalidade verificadas em outros lugares, os pesquisadores estimaram que o número de mortes no país era oito vezes menor do que o esperado. Moçambique, que até a metade da última semana registrava 2,9 mil casos e 19 mortes, foi palco de outra pesquisa que encontrou anticorpos em 10% dos 10 mil participantes.
Uma das explicações para esses números seria a baixa testagem, que resultaria na subnotificação de casos. Pesquisadores observam, porém, que nesse caso era de se esperar uma alta na mortalidade de forma geral, o que não foi verificado no Quênia. Eles apontam a baixa média de idade da população como um fator que pesa a favor da mortalidade menor. Enquanto na Espanha a idade média da população é de 45 anos, no Quênia e no Malaui é de 20 e 18, respectivamente.
Há ainda outras hipóteses em estudo. Uma delas é que os africanos tenham sido expostos a outros tipos de coronavírus, que provocam efeitos leves, como resfriados, o que aprimorou a defesa contra a Covid-19. Outra possibilidade é que a exposição regular a doenças infecciosas como a malária tenha ajudado o sistema imunológico a combater novas patogenias. Novos estudos estão sendo realizados junto à população de outros países africanos, a fim de encontrar respostas mais assertivas.
Mesmo diante de todos esses indicadores, a OMS recomenda cautela e que as autoridades sigam coordenando ações de combate e prevenção à Covid-19. “Devemos não apenas acompanhar a evolução da doença, mas também nos antecipar, prever e agir mais rapidamente para evitar resultados potencialmente desastrosos. Assim com as áreas de alta transmissão, as localidades com relativamente menos infectados merecem atenção. Em resumo, devemos ser fortes em todas as frentes”, conclui Matshidiso Moeti.
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