Desde o início da pandemia de Covid-19, a China adota uma política de Covid zero, com lockdowns rígidos sendo impostos a comunidades e até cidades inteiras quando casos da doença são detectados.
Nas últimas semanas, causou indignação a severidade das medidas impostas em Xangai, maior cidade do país, onde cercas foram colocadas em bairros e prédios onde foram registradas infecções e muitos habitantes passaram fome porque não podiam sair para fazer compras e a distribuição de comida realizada pelas autoridades chinesas era ineficiente.
Algumas restrições começam a ser revogadas, mas o lockdown só deve ser encerrado em junho.
Na China, 87% da população já completou o ciclo de vacinação contra a Covid-19, o que torna inevitável a pergunta: por que o regime comunista segue com os lockdowns apesar de o país ostentar um índice de imunização tão alto?
Na semana passada, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que a estratégia chinesa não pode ser sustentada a longo prazo.
“Quando falamos sobre a estratégia de Covid zero, não achamos que seja sustentável, considerando o comportamento do vírus agora e o que prevemos para o futuro”, alegou, em declarações que foram censuradas nas redes sociais chinesas.
Em uma reportagem publicada no último fim de semana pela revista científica Lancet, dois altos funcionários de comissões de saúde de nível provincial da China criticaram, sob condição de anonimato, a estratégia de enfrentamento à Covid-19 no país.
“A Covid-19 se tornou uma doença altamente politizada na China, e qualquer voz que defenda uma mudança na rota atual de Covid zero é punida”, afirmou um dos funcionários. “Ninguém do topo realmente ouve mais as opiniões de especialistas, e isso é honestamente humilhante para nós, especialistas médicos.”
O outro funcionário disse à Lancet que os danos causados pela política de Covid zero superam eventuais ganhos. “Não há uma boa relação custo-benefício, e todos nós sabemos disso”, lamentou.
Outra questão importante é que, apesar da alta proporção de chineses com vacinação completa, o índice de imunização ainda é baixo justamente na faixa mais suscetível a complicações da doença: entre os chineses com mais de 80 anos, pouco mais de 50% completaram o ciclo vacinal e menos de 20% receberam o reforço. Entre a população em geral, pouco mais da metade recebeu a dose extra.
Para complicar essa equação, num cenário em que a ômicron impera, a China insiste nas vacinas fabricadas no país, que não são de RNA mensageiro (mRNA), apontadas por especialistas como mais eficientes contra a variante após a dose de reforço.
Eric Topol, diretor do instituto de pesquisa americano Scripps Research Translational Institute, disse ao Financial Times que as vacinas de vírus inativado, como as fabricadas na China, demonstraram menos eficácia, ainda reduzida com o passar do tempo.
“Essas vacinas tiveram 60% de eficácia, nunca foi [algo] auspicioso, mas a ômicron realmente expôs o problema”, argumentou. A China está preparando uma vacina de mRNA, mas ainda está em testes.
Em artigo publicado na revista Nature Medicine na semana passada, cientistas chineses e americanos alegaram que, sem a política de Covid zero, a variante ômicron poderia provocar 1,6 milhão de mortes na China nos próximos seis meses.
“Acreditamos que o nível de imunidade induzido pela campanha de vacinação de março de 2022 seria insuficiente para evitar uma onda da ômicron que excederia a capacidade da estrutura de cuidados intensivos, com um pico de demanda previsto por unidades de terapia intensiva de 15,6 vezes a capacidade existente”, argumentaram os cientistas.