Na semana passada, nas eleições para a Câmara dos Conselheiros do Japão, a câmara alta do Parlamento do país, os partidos dispostos a revisar a Constituição japonesa, incluindo o Partido Liberal Democrata do primeiro-ministro Fumio Kishida, asseguraram os dois terços dos assentos na casa necessários para aprovar mudanças na Carta Magna.
Dois dias antes do pleito, o ex-premiê Shinzo Abe, correligionário de Kishida, foi assassinado, o que deixou em evidência uma bandeira dos seus mandatos à frente do Executivo japonês (de 2006 a 2007 e 2012 a 2020): um Japão mais assertivo no cenário geopolítico mundial, com maior força militar.
A Constituição japonesa promulgada em 1946, num contexto pós-derrota na Segunda Guerra Mundial e de ocupação americana, não permite que o país tenha Forças Armadas propriamente ditas.
No famoso artigo 9, “o povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou ao uso da força como meio de solução de disputas internacionais”, uma rendição depois da violenta política imperial japonesa da primeira metade do século XX.
“Para cumprir o objetivo do parágrafo anterior, forças terrestres, marítimas e aéreas, bem como outras potencialidades bélicas, nunca serão mantidas. O direito de beligerância do Estado não será reconhecido”, acrescenta o artigo.
Apesar de oficialmente possuir apenas Forças de Autodefesa, o Japão é um dos países que mais investem em segurança. Segundo números do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, no ano passado o país gastou US$ 54,1 bilhões na área, nono maior investimento do mundo.
Esse valor representou 1% do Produto Interno Bruto (PIB) japonês, mas o Partido Liberal Democrata quer que a proporção chegue a 2% até o final da década – patamar que é diretriz para os países da OTAN, a aliança militar do Ocidente, e que transformaria o Japão no terceiro país que mais gasta em defesa no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China.
Para chegar a isso, entretanto, há divergências a respeito de uma possível revisão do artigo 9 entre os partidos favoráveis às revisões constitucionais no Japão.
O Partido Liberal Democrata e o oposicionista Nippon Ishin querem manter a redação pacifista do artigo, mas com um acréscimo para deixar clara a existência legal das Forças de Autodefesa japonesas, fundadas anos depois da promulgação da Constituição do país, em 1954. As duas legendas não detalharam quais seriam os efeitos práticos dessa alteração.
Já o Komeito, que integra a coalizão governista, quer mais discussões sobre se essa mudança é necessária, assim como o oposicionista Partido Democrático para o Povo.
Em 2015, quando Abe era primeiro-ministro, o país autorizou que as Forças de Autodefesa operem no exterior para “autodefesa coletiva” de aliados, mas desde que em resposta a uma agressão que também coloque em risco “as vidas e sobrevivência da nação japonesa”.
Independentemente dessa divergência, Kishida está em um momento favorável para investir mais em segurança. Uma pesquisa divulgada no mês passado pela agência Jiji Press mostrou que mais de 50% dos japoneses entrevistados querem aumento nos gastos com defesa.
“Se o primeiro-ministro conseguir isso [aumentar os gastos em defesa para 2% do PIB], os conservadores dentro do partido migrarão para o lado de Kishida e ele terá um governo de longo prazo, sem dúvida”, disse um parlamentar japonês à agência Reuters, sob condição de anonimato. “Kishida pode se manter no trono realizando os objetivos de Abe.”
Tensões com China e Rússia
Em entrevista à Gazeta do Povo, o analista militar Paulo Filho considerou que o momento é favorável para que Kishida promova uma mudança do artigo 9.
“É bem provável que o primeiro-ministro japonês consiga dar andamento a essa tentativa de reforma da Constituição, especificamente o artigo 9, para autorizar que as forças japonesas tenham uma postura mais próxima das Forças Armadas tradicionais em todo o mundo. Era um desejo antigo do primeiro-ministro Shinzo Abe que o partido dele vai querer manter”, destacou.
A Constituição japonesa estipula no artigo 96 que emendas ao texto precisam ser aprovadas por dois terços ou mais dos votos nas duas casas do Parlamento e depois submetidas a referendo.
Filho salientou que as tensões com Rússia e China justificam a preocupação japonesa em investir mais em defesa: com os russos, há disputa pela posse das Ilhas Curilas do Sul, reivindicadas pelos japoneses desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e com os chineses, das Ilhas Senkaku, ocupadas pelo Japão desde o século XIX.
Causam preocupação também as ameaças de Pequim de “reincorporar” Taiwan e da Coreia do Norte contra os vizinhos do sul e os próprios japoneses.
O analista militar destacou que um Japão mais forte militarmente não representaria a ameaça que foi até ser derrotado em 1945.
“O Japão hoje em dia é completamente diferente daquele do início do século XX, não dá para comparar uma situação com a outra. Não vejo nenhuma possibilidade de o Japão almejar qualquer tipo de expansão territorial como aconteceu naquele período”, apontou Filho.
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