O presidente Trump muito provavelmente será derrotado em uma eleição bastante disputada. “Será” porque, em se tratando dos Estados Unidos, nada é definitivo até que as cortes tenham se pronunciado (especialmente a Suprema Corte, que tem sido bastante tímida até agora). É preciso deixar esse processo correr. Até onde sei, a essa altura não existe nenhuma prova tão avassaladora de fraude a ponto de mudar o resultado, mas os relatos perturbadores que circulam por aí merecem ser investigados. E a vantagem de Biden é tão estreita em alguns estados que, se o presidente quiser, conseguirá recontagens.
Não há a menor dúvida de que a judicialização da eleição seria usada pelo outro lado se acontecesse com eles. Os democratas, afinal, foram direto para o tapetão quando perderam uma eleição por pouco em 2000, mesmo quando Al Gore estava prestes a reconhecer a derrota. E a “Resistência” passou três anos sem aceitar o resultado de 2016, com base em uma lorota sobre interferência russa inventada pela campanha de Hillary Clinton. Nesses dias, levamos aos tribunais coisas muito menos importantes que uma eleição presidencial. Não estou dizendo que isso é bom, só estou afirmando um fato.
Vamos respirar fundo e deixar as coisas se resolverem. Não há crise institucional. Joe Biden, assim que for declarado vencedor, será “presidente eleito Biden”. Será meu presidente e o presidente de todos os americanos – ainda que muitos de nós sejamos totalmente opostos a muito do que ele pretende fazer. Se ele vencer, deverá ter a chance de ser um bom presidente – chance essa que os democratas nunca deram a Trump. Pelo bem de Biden, e principalmente pelo bem do país, os departamentos e agências do governo deveriam se preparar para uma transição tranquila.
Para os que apoiavam a reeleição do presidente (inclusive eu), o resultado é difícil de engolir. Mas não era difícil de prever
Nesse meio tempo, os estados não precisam formalizar seus resultados até 8 de dezembro (de fato, eles têm até 14 de dezembro, o dia em que os estados precisam se reportar ao Congresso). Até agora, Biden tem adotado o tom certo, ao pedir paciência e calma nesses dias nervosos de apuração. Isso vai aumentar seu cacife como presidente legítimo, ao encorajar um processo ordeiro de ações judiciais enquanto, é claro, defende seus direitos nessas mesmas ações.
Para os que apoiavam a reeleição do presidente (inclusive eu), o resultado é difícil de engolir. Mas não era difícil de prever.
Em 2016, Trump venceu por pouco uma eleição contra uma candidata historicamente fraca e bastante impopular, pela qual havia muito pouco entusiasmo. Em 2020, Trump enfrentou um fraco, mas nada impopular candidato democrata. E, ainda que houvesse pouco entusiasmo por Biden, o desejo de derrotar Trump era intenso na base democrata. Dado o milagre estatístico da vitória de 2016, Trump teria de fazer bem mais para vencer em 2020. Ele até superou as expectativas, mas não superou 2016.
O poder da presidência pode camuflar muitas deficiências. Mas é importante rever como a improvável presidência de Trump já começou em posição complicada. Na sua lamúria sem fim de “fui roubada”, Hillary Clinton nunca se cansou de dizer que tinha ganho no voto popular. Isso não é apenas irrelevante do ponto de vista constitucional, já que são as disputas estaduais (refletidas no Colégio Eleitoral) que decidem o resultado; também era um modo clintoniano de desviar a atenção do fato de que ela não tinha obtido a maioria do eleitorado. Mas o que isso nos diz sobre Trump?
O voto popular é um retrato interessante da posição em que o então novo presidente se encontrava em 20 de janeiro de 2017. Ele teve 3 milhões de votos a menos que alguém que foi incapaz de superar 50% do eleitorado. De alguma forma, ele conseguiu vencer uma corrida de apenas dois participantes, com meros 46% dos votos. Dos quase 140 milhões de votos depositados nas urnas, 54% não o queriam. Se uma parcela pequena de eleitores em alguns poucos estados tivesse pensado diferente, ninguém estaria falando de uma revolta populista. A história seria a de como Hillary, uma eminência do establishment de Washington, conseguiu a vitória tranquila que todas as pesquisas e a intelligentsia tinham previsto. A New Yorker teria publicado com gosto a capa que prepararam para a ocasião.
A maneira certa de enxergar o mais improvável dos triunfos de Trump era como um presente... e uma oportunidade. Era a chance de convencer os republicanos céticos e a enorme população de centro, de transformar aquela desvantagem de 46% contra 54% em um apoio de 54% a 46%, e ir além disso. Trump tinha as plataformas para isso, além de um jeito único de conquistar partes do eleitorado que tinham se cansado dos republicanos tradicionais.
Mesmo assim, o presidente nunca foi capaz de deixar de pensar só em si mesmo.
Isso ficou claro desde o início. Em vez de reconhecer que estava começando um mandato com um nível de apoio baixo, ele passou a se gabar da “lavada no Colégio Eleitoral”. Era uma miragem irônica de popularidade: Trump já tinha chamado o Colégio Eleitoral de “um desastre para a democracia” e sua margem de vitória em número de delegados estava entre as cinco menores na história americana. Mesmo assim, ele continuava falando da “lavada”, enquanto sua equipe começou a todo vapor de forma absurda, exibindo fotografias aéreas claramente montadas como uma bizarra “evidência” de que sua posse tinha atraído mais gente que a de Barack Obama.
Em um país onde as pessoas gostam de gostar de seu presidente, se as suas políticas são mais populares que você, então você tem um problema
O primeiro passo óbvio para um presidente impopular se tornar um presidente reeleito é reconhecer que ele tem muito trabalho a fazer com o público, especialmente com aqueles que poderiam ser convencidos a lhe dar uma chance quatro anos depois – o que é muita gente, porque a maioria dos americanos não é de fanáticos partidários; eles gostam de gostar de seu presidente. Foi essa consciência que levou Richard Nixon à reeleição em uma das maiores lavadas (dessa vez, de verdade) da história americana – no Colégio Eleitoral e em qualquer outro critério.
Mas Trump nunca foi capaz disso. Ele esteve o tempo todo sob cerco – mais do que merecia estar –, mas foi ele mesmo quem atraiu boa parte disso ao se meter em brigas gratuitas com irrelevâncias que ele deveria ter ignorado. Igualmente importante é o fato de que, quando os problemas vieram, e vieram em ondas, ele recuou para a zona de conforto de seus apoiadores. Eles encontravam desculpas para cada deslize, retratavam seus erros como manobras hábeis de um negociador nato, e nunca exigiram que ele recuperasse a compostura. Pelo contrário, eles achavam seu estilo irresistível, assim como Trump achava irresistível seu lugar de centro das atenções mundiais, não importando se chamava a atenção por motivos bons ou ruins.
O presidente Trump fez uma série de coisas boas. A guinada constitucionalista no Judiciário federal será seu grande legado, especialmente se Biden ressuscitar a estratégia “caneta e telefone” de Obama, contornando o Congresso. Trump mostrou que a economia americana decola quando o governo retira regulamentações sufocantes, e que o crescimento é um grande impulso para os americanos de renda mais baixa. Ele deu aos republicanos uma série de meios para conquistar o apoio de negros e hispânicos. Ele redesenhou a política sobre a China de uma forma bem mais realista, considerando que estamos lidando com um competidor hostil. Ele marginalizou a ameaça iraniana e reorientou a política para o Oriente Médio, conseguindo acordos de paz que pareciam inimagináveis. Ele foi escancaradamente pró-vida (e eu estava errado em achar que aquilo era só discurso de campanha em 2016). Ele mostrou aos republicanos que vale a pena lutar a guerra cultural sem trégua, em vez de ir cedendo aos pouquinhos.
Ainda assim, é enlouquecedor que ele jamais tenha reconhecido a majestade da presidência, não tenha encarado seus incríveis deveres como algo elevado, algo do qual ele deveria lutar para ser digno. Ele nunca percebeu que o grande poder da presidência está no fato de que, quando o presidente fala, isso significa algo – e que abrir mão desse poder leva à ruína. Ele nunca compreendeu que, em um país onde as pessoas gostam de gostar de seu presidente, se as suas políticas são mais populares que você, então você tem um problema.
A maioria dos americanos acredita – e por muito bons motivos – estar melhor hoje que quatro anos atrás, com o presidente anterior. Mesmo assim, eles votaram para substituir o atual presidente pelo vice do anterior. Isso só significa uma coisa: que o grande inimigo de Trump não era Joe Biden. Era Donald Trump.
Andrew C. McCarthy é pesquisador sênior no National Review Institute, editor da National Review e autor de Ball of collusion: the plot to rig an election and destroy a presidency.
© 2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.
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