Ninguém na indústria televisiva de Israel se interessou muito quando Avi Issacharoff e Lior Raz chegaram tentando vender "Fauda", programa sobre um grupo de agente secretos infiltrados à caça de terroristas palestinos na Cisjordânia – e não foi para menos.
O público queria mais era fugir, mergulhando de cabeça em shows de talentos como "The Voice" ou "Master Chef", nos quais a competição é individual, não nacional; ou em reality shows como "Big Brother", nos quais o conflito é pessoal, não político; ou ainda ficções como "Loaded", dramédia sobre uma startup de tecnologia cujos donos se tornam milionários da noite para o dia, em uma versão israelense fictícia do Vale do Silício.
"O pessoal não quer nem ouvir falar de palestino. Aliás, não está nem aí para eles. Eu chegando para falar que tinha escrito um roteiro sobre o conflito Israel-Palestina, os caras riam na minha cara", explica Issacharoff, jornalista que cobre as questões árabes. Ele foi falar com os executivos das TVs de seu país, mas foi como se estivesse falando com os judeus em geral.
Pois Issacharoff e Raz, que começaram a escrever a série em 2010, riram por último: "Fauda", palavra árabe para "caos", virou sucesso de público e crítica. Em Israel, é o seriado mais visto da história do canal por satélite Yes, enquanto o New York Times o considerou a melhor opção internacional do gênero em 2017.
A segunda temporada, que estreou em dezembro passado em Israel, nas versões hebraica e árabe, agora está disponível na Netflix com legendas em inglês. Uma terceira já está engatilhada, embora a popularidade da série também a transforme em alvo fácil: o movimento Boicote, Desinvestimento, Sanções, por exemplo, exigiu que a empresa desistisse do programa, classificando-o como "doutrinação racista que promove e legitimiza os crimes de guerra cometidos por esquadrões da morte do exército israelense".
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O que explica seu sucesso é um tipo diferente de escapismo: para os israelenses, é a chance de visitar lugares e se envolver em assuntos que normalmente evitam, para depois voltar à segurança da rotina com um toque no controle remoto.
Viver em Israel significa conviver com o conflito de uma forma difícil de entender para os norte-americanos. O celular apita constantemente para anunciar a mensagem de texto que reporta o mais recente ataque à faca ou atropelamento em massa; aplicativos ligados ao sistema da Defesa Civil mandam a população para abrigos antibomba quando os morteiros ameaçam as comunidades.
Cisjordânia é barreira psicológica para israelenses
Para parte dos israelenses, o muro alto de concreto que os isola de quase toda a Cisjordânia representa um tipo de barreira psicológica mais que necessária, pois podem se desligar do conflito e dos palestinos se assim desejarem. E é o que muitos fazem. "O povo quer se divertir, ir à praia, comer fora, ficar sentado nos cafés, ouvir música boa", define Issacharoff durante o café da manhã que tomamos perto de sua casa, em Tel Aviv.
No entanto, o trabalho feito em nome das forças israelenses do contraterrorismo nunca para. Em "Fauda", ele é retratado como uma tarefa amarrada, ingrata e moralmente complicada: os integrantes da unidade, por exemplo, agentes de carreira entre 30 e 40 e poucos anos, são carinhosos com a família em casa, mas saem para torturar os outros – ou coisa pior.
"É como se a gente levantasse a cortina para mostrar um lugar de que ninguém fala. Não dá para entender o preço psicológico que essas pessoas pagam por suas ações, nem aquilo em que a função implica de verdade", diz Raz, que interpreta o protagonista, Doron Kavillio e já fez parte do Duvdevan, comando de elite conhecido por integrantes que se disfarçam de árabes.
Leis e regras são burladas constantemente; ordens, ignoradas. Inquestionável mesmo, só o mérito da causa.
Olhando o outro lado do muro
Segundo seus criadores, ao retratar a violência israelense e parte da humilhação que os palestinos enfrentam diariamente, "Fauda" permite que o telespectador dê uma espiada do outro lado do muro, para ver alguns dos aspectos mais medonhos da ocupação e depois voltar à segurança rotineira, tentando se convencer de que tudo não passa de mentirinha.
"Quando você vê um grupo de israelenses executando alguém, não é escapismo, mas se você se convence de que é só uma série de TV, então é. Ver um bando de israelenses batendo sem dó em um idoso é horrível, mas aí você pode dizer que está na TV, então é ficção", afirma Issacharoff.
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Ligeiramente diferente de uma fuga, mas não menos hipnotizante – é assim que "Fauda" permite ao público, ainda que momentaneamente, se esquivar do conflito e suas narrativas contraditórias, que tem todos os elementos de um jogo que amortiza as sensibilidades, no qual todo mundo sai perdendo. Cada um dos lados se vê como vítima e o outro, o predador. Não há empatia e muito menos interesse em reviver um processo de paz que, depois de 25 anos, parece ter perdido força.
Porém, criando personagens complexos de ambos os lados – heróis israelenses que se mostram capazes das piores crueldades, vilões palestinos capazes do amor mais puro – a série talvez pise nos calos causados por tantos anos de atrito. "Comecei a receber e-mails de israelenses falando que, pela primeira vez na vida, estão compreendendo e tendo pena do outro lado. A mesma coisa em Gaza, Kuwait, Líbano e Turquia", vibra Raz.
Série serve de fuga
Issacharoff e Raz admitem que a série é muito mais uma fuga para os israelenses, seu público-alvo, do que para os palestinos (a terceira temporada será a primeira a ter em mente o público internacional) que, por sinal, não se veem representados na equipe de roteiristas.
Entretanto, as indignidades por que passam os palestinos no dia a dia não são totalmente ignoradas: no primeiro episódio aparece um carro sendo confiscado em um posto de verificação israelense; já outros aspectos mais perniciosos da ocupação, como a demolição das casas e o despejo promovido em vilarejos beduínos inteiros, ainda não apareceram na telinha.
Issacharoff disse que não queria enfatizar demais esse fator, sugerindo que "até para os palestinos é cansativo". "Entre os palestinos já virou meio que uma piada. Se o aluno chega atrasado para a aula, o professor pergunta o que aconteceu e ouve: Foi a ocupação", completa.
Entretanto, para Sayed Kashua, o humorista árabe-israelense que escreveu a aclamada série de 2007 "Avoda Aravit", não há nada engraçado em "Fauda", e reclama que vender a série como uma narrativa de ambos os lados do conflito é, no mínimo, capcioso. Ele, que é professor da Universidade do Illinois, diz que:
Se um roteirista israelense sente a necessidade de humanizar os palestinos, então ele parte do pressuposto de que não são humanos. Além do mais, mostrá-los chorando ou se apaixonando não passa de um mero retrato exótico. Não dá para humanizar um assassino só mostrando o sujeito chorando, abraçado à mãe.
Embora Issacharoff se diga satisfeito por simplesmente abrir algumas mentes e corações por enquanto, nem ele, nem Raz deixam claros os próprios preconceitos. Quando pergunto sobre o vilão que explode um de seus amigos – detalhe com que muitos palestinos implicaram – Issacharoff comenta que, há muitos anos, quando os homens-bomba eram mais frequentes, os comandantes terroristas exploravam os mais fracos para convencê-los a se suicidar, em vez de se prontificarem ou oferecerem os próprios filhos para a tarefa.
"Olha só, sou israelense, sou judeu e sou sionista. A minha narrativa é a de Israel. Ainda não consegui entender, depois de 18 anos, esses homens-bomba. Claro que o cara que está mandando um de seus homens para a missão não liga a mínima para o sujeito e é um ser humano desprezível", desabafa.
"E sabe do que mais tenho certeza? De que a maioria dos palestinos, bem lá no fundo, sabe disso", conclui.