Manifestantes egípcios gritam slogans em frente da casa do premiê Kamal Ganzouri, nomeado pela junta militar: escolha não agradou| Foto: Odd Andersen/AFP

Tensão

Confronto deixa um morto

Folhapress

Novos distúrbios foram registrados ontem na capital do Egito, Cairo, entre as forças de segurança e manifestantes que pedem a saída imediata da junta militar que governa o país desde a queda do ex-ditador Hosni Mubarak. Ao menos uma pessoa morreu durante os confrontos entre policiais e manifestantes que permaneciam concentrados em frente da sede do Conselho de Ministros do Egito, segundo informou o Ministério da Saúde.

De acordo com a emissora de tevê estatal egípcia, as tensões tiveram início quando as forças de segurança pediram aos opositores presentes que se retirassem. O grupo aglomerado no local, porém, tomou uma postura mais agressiva ao ver uma viatura dar ré e atropelar dois cidadãos.

Um deles, de 21 anos, morreu e outro ficou ferido, disse o diretor do hospital de Al Munira, Mohammed Shauki, à agência oficial de notícias Mena.

Na Praça Tahrir, a movimentação continua alta, mas o ambiente estava mais calmo. Dezenas de voluntários limpavam os restos da grande manifestação que exigiu aos militares que abandonassem o poder imediatamente.

Grupos opositores propõem um governo de salvação nacional liderado pelo prêmio Nobel da Paz e candidato presidencial Mohamed ElBaradei, uma opção rejeitada pelo Exército.

Durante a manifestação de sexta, ElBaradei, também ex-diretor da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), se uniu às dezenas de milhares de pessoas no local para apoiar a causa de fim do poder do Exército.

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Se no Brasil existem 190 milhões de técnicos de futebol, no Egito a queda de Hosni Mubarak fez surgir 82 milhões de analistas políticos. Doses de nacionalismo dignas de uma Copa do Mundo entraram em campo. Egípcios de todos os espectros da sociedade se veem às voltas com disputas ferozes, como torcidas rivais.

Nove meses após a derrocada do ditador, as eleições parlamentares que começam amanhã marcam o pontapé inicial da democracia. Ou ao menos deveriam marcar. Enquanto islamistas da Irmandade Muçulmana se aproveitavam de uma capacidade natural de fazer campanha eleitoral nas mesquitas após as orações, partidos seculares, nascidos durante o levante contra Mubarak, ainda buscavam líderes e plataformas concretas.

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"Ironicamente, foram os islamistas os que mais se ajustaram a um mecanismo democrático como a campanha, com corpo a corpo e panfletagem", observou o pesquisador Shadi Hamid, do Brookings Institution.

Um bom resultado é iminente, e a facção defende a todo custo as eleições. Mas, no último mês, os ativistas pró-reforma da Praça Tahrir notaram sinais de que o Conselho Supremo das Forças Armadas, interinamente no poder, manobrava para institucionalizar seu papel hegemônico no novo sistema político. A chamada emenda Silmi – referência ao vice-premiê Ali el-Silmi – dava à junta superpoderes: mantinha em segredo o orçamento militar; permitia às Forças Armadas apontar a maioria dos membros da Assembleia Constituinte que vai escrever a Constituição e dava, ainda, poder de veto sobre qualquer artigo da nova Carta Magna.

O ultraje dos revolucionários foi imediato. E somou-se ao descontentamento pela manutenção de leis de emergência e pelos crescentes julgamentos de civis em cortes marciais. Na semana passada, novos protestos lotaram as ruas, e uma repressão violenta matou 39 pessoas. A indignação renovada rachou o país.

Há quem queira a renúncia da junta militar imediatamente e a outorga do poder a um governo civil. Qual? Não se sabe exatamente. Muitos temem que a instabilidade dos últimos dias ameace a segurança da votação e alegam, ainda, que o processo eleitoral, previsto para se arrastar até março, não será transparente.

Outros grupos defendem o sufrágio a qualquer preço – afinal, trata-se do primeiro passo oficial rumo à democracia. "Chegamos a um ponto perigoso da revolução", constata o cientista político Mustapha Kamal al-Sayyid, da Universidade do Cairo. Em nove meses, os manifestantes se agarraram a ideais, menosprezando a necessidade de lideranças verdadeiras. Já os militares se recusaram a cuidar de sua reputação e voltar a seu papel de fato, o de cuidar do país sem governá-lo.

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Parlamento

O peso das eleições se justifica. Eleitos os representantes do Parlamento bicameral – formado pela Assembleia do Povo (ou Majlis al-Shaab) e pelo Conselho da Shura – serão pinçados os cem membros do comitê encarregado de reescrever a Consti­tuição. E tanta inquietação nas ruas trouxe de volta problemas majoritários, esquecidos há meses, como o obscurantismo com o qual a junta militar instituiu as regras para um complexo sistema eleitoral misto. Votações em três etapas, de dois dias cada. Um processo de cinco meses. Metade das cadeiras destinadas a trabalhadores rurais e filiados a sindicatos.

Em março, findo o processo, seria a hora de preparar a eleição presidencial – prometida para até julho de 2012. Soa complicado para os brasileiros. Para os egípcios também. "Ninguém entende como vai funcionar uma eleição de meses, ou mesmo se haverá divulgação de resultados parciais. A revolução errou ao não cobrar clareza dos militares em nove meses. Defendo a votação de amanhã. É a opção menos pior agora", resigna-se al-Sayyid.

A própria praça Praça Tahrir, o berço da revolução, rachou. "Não entendo por que insistimos por meses na outorga de poder a um conselho nacional de transição formado por civis. Repre­sentatividade é importante mas, no momento, só precisamos que as Forças Armadas saiam do caminho. Depois, eleições", afirmou o cientista político Mohamed el-Dahshan, em tom de mea culpa.

Não longe dali, o jornalista Muhammed Ghafari discordou do que chama de injustiça: "Ser favorável à manutenção das eleições não significa ser a favor da Junta Militar. Eu sou a favor de democracia".

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Com as urnas abertas, restará saber se os egípcios conseguirão uma goleada no jogo da democracia. No primeiro tempo e sem prorrogações.