O anúncio foi feito com ares de triunfo de nação predestinada. No meio da semana, a Rússia confirmou o registro da primeira vacina contra coronavírus, mesmo sem todos os testes usuais. Ela se chama Sputnik V, referência ao primeiro satélite orbital lançado pela União Soviética, em 1957, e já começou a ser produzida. A busca por uma vacina se tornou uma versão repaginada, e arriscada, das corridas espacial e nuclear daquele período.
Especialistas em saúde pública alertam que essa pressa pode resultar em uma pandemia mais duradoura, ao impedir a alocação mais eficiente das doses para prevenir a Covid-19. Alguns países estão usando seu dinheiro para tentar comprar o primeiro lugar na fila de suprimentos, caso uma vacina experimental se mostre eficaz.
EUA, Reino Unido, União Europeia e Japão saíram na frente na corrida para estocar vacinas contra o coronavírus e, juntos, já reservaram mais de 1,3 bilhão de doses - todos esses imunizantes estão em fase de testes.
O Brasil fechou acordo em junho para receber 100 milhões de doses da vacina produzida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca. Israel desenvolve sua vacina e diz que pode ter 15 milhões de doses até o fim do ano. Todas a empresas farmacêuticas da Índia, uma potência no setor, fecharam acordo para garantir doses ao país durante a produção.
"Tal competição estimulou um fenômeno que ficou conhecido como nacionalismo da vacina - a disputa de governos para garantir doses de candidatas promissoras", disse ao jornal O Estado de S. Paulo David Fidler, pesquisador de saúde global do Council on Foreign Relations e ex-consultor jurídico da OMS. "A disputa internacional para encontrar uma vacina aumentou temores de que a necessidade dos países de declarar vitória sobre a pandemia logo poderia levá-los a contornar as salvaguardas que protegem as pessoas de produtos médicos não comprovados."
Não é só a Rússia que está fazendo isso. Pesquisadores nos EUA, Reino Unido e China também estão alterando regulamentações estabelecidas para acelerar seu trabalho. A China começou a testar em seus militares uma vacina não aprovada. O presidente Donald Trump foi acusado por especialistas de acelerar o processo para obter um imunizante antes de novembro e ter vantagens eleitorais.
Mas a Rússia simplesmente atropelou as regulamentações. A vacina russa sequer havia começado os testes clínicos de fase três - quando a substância é testada em milhares de pessoas. O lançamento apressado de uma vacina ineficaz - ou pior, insegura -, argumentam os especialistas, seria um grande revés para os esforços globais de imunização em massa.
Este risco levanta dúvidas sobre a real vantagem de um país de um país ter a vacina primeiro. "Para a Rússia, liderar a corrida das vacinas é um caminho para uma maior influência geopolítica. Mas o país também está tentando evitar parecer dependente das potências ocidentais, com as quais as relações são historicamente ruins", disse Nikolas Kirrill Gvosdev, estudioso de relações internacionais russo-americanas no Colégio de Guerra Naval dos EUA.
"A Rússia não está apenas se voltando para seu parceiro estratégico de longa data, a Índia, mas também alcançando uma série de potências intermediárias, a maioria das quais teve atritos em suas relações com os EUA nos últimos anos", afirma Gvosdev. "Esta oferta de vacina é o esforço da Rússia para estabelecer a liderança de um grupo intermediário de nações que querem evitar a escolha binária de Washington ou Pequim. E é parte dos esforços de Putin para manter um papel de liderança global."
A lista de países interessados na vacina russa, mesmo sem testes e regulações, já inclui as Filipinas, onde o próprio líder populista Rodrigo Duterte disse que vai tomar uma dose, além de países como Sérvia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, México e mesmo o Brasil. Segundo Kirill Dmitriev, chefe do fundo de riqueza soberana da Rússia, que bancou o desenvolvimento da Sputnik V, ao menos 20 países querem 1 bilhão de doses da vacina.
Em troca? Ninguém sabe ao certo. "Simplesmente nunca vivemos um contexto em que uma vacina para uma pandemia se confunde com a geopolítica", disse Fidler. "Mas se a China usa até seus pandas para obter vantagens diplomáticas, financeiras ou militares, uma vacina segura e eficaz dará aos EUA ou China a capacidade de colocá-la à disposição de maneira que atenda aos seus interesses nacionais. Os países de média e baixa renda têm experiência suficiente para reconhecer que o acesso a uma vacina dos EUA ou da China virá com amarras políticas."
No começo da pandemia, mais de 90 países restringiram de alguma maneira a exportação de equipamentos hospitalares, como ventiladores e respiradores, e até máscaras. Foi o uso clássico do poder suave - seja um amigo e aliado agora, veja como isso pode render mais tarde.
Na última pandemia, os países ricos adquiriram todo o estoque disponível de vacinas contra o vírus da gripe H1N1, em 2009-10. "A OMS não tem nada que lhe dê autoridade para dizer aos países o que fazer com os suprimentos de vacinas", disse Volker Gerdts, diretor do Departamento de virologia na Universidade de Saskatchewan. "A realidade política vai se impor. E a pressão será tão forte que os apelos por equidade vindos de países de baixa renda não terão efeito."
"O nacionalismo da vacina não é apenas moral e eticamente repreensível: é contrário aos interesses econômicos, estratégicos e de saúde de todos os países", escreveram Thomas Bollyky, diretor do programa de Saúde Global on council on Foreign Relations, e Chad Bown, economista do Peterson Institute na revista Foreign Affairs. "À medida que os países aceleram para garantir seu próprio acesso antecipado às vacinas, eles estão falhando em retardar a disseminação do vírus em outros lugares, promovendo interrupções na cadeia de suprimentos, estimulando economias de maneira ineficiente e possivelmente gerando conflitos geopolíticos. É a tragédia da vacina."
História indica que primeira vacina nem sempre é a melhor
Em 1768, a imperatriz russa Catarina, a Grande, se ofereceu para ser vacinada contra a varíola, em um esforço para mostrar aos súditos que a técnica médica emergente era segura. Na ocasião, a Rússia enfrentava uma severa epidemia de varíola. Ela contratou o médico inglês Thomas Dimsdale, que defendia um método de inoculação de pus de doentes com sintomas leves de varíola em pessoas saudáveis para que eles não se infectassem - um método que era usado havia tempos em países orientais.
Ela foi inoculada em segredo, mas a carruagem mais rápida da Rússia ficou a postos caso algo acontecesse a Catarina e seus súditos quisessem linchar Dimsdale. A operação foi um sucesso, Catarina se recuperou em poucos dias, e o método de inoculação preventiva se espalhou.
Tudo isso aconteceu 30 anos antes do médico inglês Edward Jenner se consagrar ao vacinar o jovem James Phipps com fluidos das pústulas de vacas com varíola bovina, que preveniram Phipps de contrair a doença. O método ficou consagrado por ser mais seguro que a inoculação em pessoas saudáveis do que o pus de pacientes com varíola.
A história exemplifica como, na ciência, nem sempre a primeira vacina é a melhor.
"As pessoas acham que a vacina mais útil é que a sair primeiro. A vacina mais útil é a que tenha o resultado completo, integral, mais positivo para o público" afirma o médico Márcio Sommer Bittencourt, pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (CPCE-USP) e mestre em saúde pública. "Um pedaço sempre é o preço, mas outro muito importante é a segurança. E outro é a eficácia. E o último pedaço é a logística. A vacina que tiver o melhor balanço entre preço, eficácia, segurança e logística, é a vacina que vai dar certo. E talvez seja mais de uma porque elas podem ser parecidas."
"A vacina que ganhará é a que nessa combinação tiver o melhor perfil. Pode ser a terceira ou a quarta, pode sair meses depois da primeira ou daqui anos", diz Bittencourt.
Especialistas em saúde pública e a própria OMS têm alertado que a busca pela vacina mais efetiva não será um processo rápido - nem vai se encerrar com a descoberta do primeiro imunizante. "O cenário realista provavelmente será mais parecido com o que vimos com o HIV / AIDS", disse ao Washington Post Michael Kinch, especialista em desenvolvimento e pesquisa de medicamentos da Universidade de Washington. "Com o HIV, tivemos uma primeira geração de medicamentos bastante medíocres. Receio - e as pessoas não gostam de ouvir isso, mas estou constantemente dizendo isso - que temos que nos preparar para a ideia de que não teremos uma vacina muito boa. Meu palpite é que a primeira geração de vacinas possa ser medíocre."