Na última semana, representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) fizeram um alerta ao governo britânico, argumentando que a necessidade de proteger segredos de Estado não pode servir de desculpa para intimidar a imprensa. A declaração é mais um desdobramento do caso Edward Snowden, ex-técnico da CIA que denunciou um esquema de espionagem comandado pelos Estados Unidos, suscitando questionamentos não apenas sobre os procedimentos do governo norte-americano para monitorar governos e cidadãos, mas também sobre a liberdade de imprensa.
A discussão ganhou corpo no final de agosto, quando ocorreu a detenção de David Miranda, namorado brasileiro de Glenn Greenwald, correspondente do jornal The Guardian no Rio de Janeiro e primeiro jornalista a divulgar o conteúdo dos documentos vazados por Snowden. Com base na lei antiterrorismo, Miranda foi interrogado por nove horas e teve equipamentos eletrônicos pessoais apreendidos. Segundo informações da inteligência britânica, ele estava transportando documentos confidenciais, que, de acordo com o governo, apresentavam risco à segurança nacional.
Antes disso, o Guardian já vinha sendo alvo de pressão por parte das autoridades inglesas, que fizeram a direção do jornal destruir material repassado por Snowden. A Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) reagiu à intervenção e seu presidente, Jim Boumelha, se disse "chocado e profundamente preocupado" com os incidentes. "Esses incidentes representam uma derrocada dos direitos civis e da liberdade de imprensa. Jornalistas de todo o mundo estão sob crescente vigilância, sendo barrados nas fronteiras e sofrendo interferência em seus trabalhos. Esse tipo de ação é inaceitável", afirmou o dirigente, defendendo que o Parlamento britânico investigue as razões pelas quais os documentos do Guardian foram destruídos.
Disputa de poder
Para Andrea Torrente Leite, integrante do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo (USP), o embate entre o governo inglês e o jornal The Guardian nada mais é do que uma disputa de poder, da qual geralmente quem sairá vencedor é aquele que detiver maior poder. "Quem está no controle tem mais influência para ganhar a disputa", avalia a especialista, embora não arrisque um prognóstico sobre as consequências da pressão sobre o jornal.
Na opinião de Andrea, mesmo a Justiça não está preparada para lidar com casos dessa natureza, visto que há um conflito entre a liberdade de expressão e o direito do sigilo de informação. "Até onde vai o poder do Estado e o direito daquele que divulga a informação? Não há uma resposta pronta. Não existe lei que possa garantir razão a qualquer uma das partes", acredita.
Autoridades apontam risco à segurança
Enquanto entidades defendem a liberdade de expressão, o governo inglês argumenta que os documentos vazados por Edward Snowden e de posse do The Guardian continham informações pessoais que poderiam identificar funcionários da inteligência trabalhando no exterior e, com isso, colocar vidas em risco.
Segundo jornais ingleses, logo após a divulgação das primeiras reportagens sobre o esquema de espionagem norte-americano, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, pediu para um de seus ministros advertir o Guardian. Após o contato, o diretor do jornal, Alan Rusbridger, permitiu que analistas do centro de escutas britânico GCHQ supervisionassem a destruição de materiais confidenciais entregues por Snowden. O procedimento foi adotado como forma de não devolver o material ao governo britânico.
Debate
"A intimidação de jornalistas e veículos de comunicação não contribui para o debate necessário sobre o assunto. Sob nenhuma hipótese, jornalistas ou membros de organismos de defesa dos direitos humanos devem ser submetidos à intimidação e subsequente punição", rebateu na semana passada Frank de La Rue, relator especial da ONU para a liberdade de expressão.