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Uma nova série de revelações dos Twitter Files, informações internas da rede social entregues pelo novo dono Elon Musk a um conjunto seleto de jornalistas, detalha o trabalho do Projeto Viralidade. O projeto, voltado para moderação de conteúdo, é uma colaboração secreta entre a Universidade Stanford, agências federais do governo americano e plataformas sociais na Internet que começou nas últimas eleições presidenciais dos EUA e expandiu suas atividades na pandemia. Como detalhou a Gazeta do Povo na semana passada, a iniciativa chegava a recomendar a censura de informações sabidamente verdadeiras sob o pretexto de conter a “hesitação vacinal”.
Matt Taibbi, jornalista que publicou essa série na última sexta (17), a numerou como a 19ª. A pedido de Musk, as revelações são publicadas primeiro no próprio Twitter. Um boletim semanal do Projeto Viralidade publicado pelo jornalista, com data de 8 de junho de 2021, tem entre seus principais tópicos um “vácuo de informação” sobre o risco de inflamação do coração de adolescentes (um efeito colateral confirmado); os “medos” e “alegações sem base” da “comunidade antivacina” sobre a proteína de espícula dos imunizantes de mRNA (um da Pfizer-BioNTech, outro da Moderna); a comparação dos passaportes vacinais às leis de segregação racial do passado; e a “exacerbação da desconfiança contra o Dr. [Anthony] Fauci e as instituições de saúde dos Estados Unidos” após a liberação de e-mails de Fauci via lei de acesso à informação.
Fauci, uma das principais autoridades científicas americanas, atuou como consultor líder contra a pandemia nos governos Trump e Biden até se aposentar em dezembro passado. Os autores do boletim se mostram preocupados em proteger o “aconselhamento de especialista” oferecido pelo cientista. Neste ano, uma investigação do Congresso americano revelou que Fauci encomendou, em fevereiro de 2020, um artigo que lançasse dúvida sobre a possível origem da Covid por vazamento laboratorial, depois agiu, em coletiva de imprensa ao lado do então presidente Donald Trump, como se não conhecesse os autores do artigo. Outros e-mails da época revelam que ele chegou a considerar a possibilidade de denunciar marcas estranhas no material genético do vírus ao FBI, mas nunca manifestou em público que levou a possibilidade do vazamento a sério.
O boletim do Projeto Viralidade era enviado para as redes sociais, com o subtexto de que o conteúdo deveria ser alvo de moderação. Em um e-mail do projeto para o Twitter, os autores mencionam “as alegações do senador Paul Rand sobre a imunidade natural”, intervertendo a ordem do nome e sobrenome do senador Rand Paul, republicano libertário que sabatinou Fauci em audiência pública a respeito de sua atuação na pandemia. O documento pede atenção até para “piadas preocupantes com tons violentos” sobre um plano do governo Biden de levar a vacina de porta em porta.
“Todos [esses exemplos] foram caracterizados como ‘violações em potencial’ ou ‘eventos’ de desinformação pelo Projeto Viralidade”, explicou Taibbi, “um esforço abrangente e multiplataforma de monitorar bilhões de posts das redes sociais pela Universidade Stanford, agências federais e uma série de ONGs muitas vezes financiadas pelo Estado”.
Quais redes sociais participaram
Além do Twitter, as plataformas envolvidas são Google/YouTube, Facebook/Instagram, Medium (uma rede de blogs), TikTok e Pinterest. O Projeto Viralidade disse que elas colaboraram “reconhecendo o conteúdo denunciado e agindo em concordância com suas [próprias] políticas”. Também lhes agradeceu por ocasionalmente fornecerem informações ao projeto “sobre o alcance das narrativas antes denunciadas” por ele. Um email de fevereiro de 2021 anunciando outro boletim menciona “conversas conduzidas por Estados estrangeiros sobre passaportes vacinais”, “hesitação vacinal expressada pelos jogadores da NBA [Associação Nacional de Basquete]” e “acusações de censura” contra as plataformas. Também comemora a expansão de suas atividades para conteúdo em espanhol e mandarim.
Para Taibbi, as revelações são importantes por dois motivos. Mostram um estrondoso sucesso do Projeto Viralidade como um protótipo de iniciativa “orwelliana” de controle, e uma aceleração da censura digital — dando um passo à frente do mero julgamento de verdadeiro/falso para “um modelo novo, mais medonho, abertamente voltado para a narrativa política às custas dos fatos”.
Lógica “Minority Report”
O que parece ter iniciado o Projeto Viralidade foi um e-mail de Isabella Garcia-Camargo, de Stanford, para funcionários do Twitter, incluindo o ex-chefe de segurança Yoel Roth, em 5 de fevereiro de 2021 — pouco tempo após Joe Biden tomar posse como presidente dos EUA. Ela faz referências a conversas anteriores envolvendo outros grupos das universidades de Washington e de Nova York, e sugere usar o mesmo sistema de tickets online, como os usados em atendimento a consumidores por empresas, chamado “sistema Jira”. O método já estava sendo usado em um projeto de denúncia de desinformação nas eleições, dos mesmos atores, a “Parceira de Integridade das Eleições” (EIP). A EIP acabou se transformando no Viralidade.
Em março, os denunciadores da parceria público-privada expandiram sua monitoração para plataformas alternativas como Gab, Parler, Telegram e Gettr, atingindo uma vigilância quase total das mídias sociais. Não há sinal de que essas plataformas tenham colaborado. Sob influência do Viralidade, o Twitter, que antes exigia que um conteúdo fosse “demonstravelmente falso” ou contivesse uma “afirmação de fato” falsa para que fosse submetido à moderação, passou a expandir a possibilidade de censura para, nas palavras do projeto, “posts verdadeiros que poderiam promover a hesitação”.
Um exemplo foi o fechamento de uma escola em Nova York por excesso de eventos adversos pós-vacinação. Outro conteúdo denunciado foi uma matéria do New York Times sobre a trombocitopenia, um possível efeito colateral da vacina da AstraZeneca. Em outro email de apresentação de boletim, o Projeto Viralidade alerta contra uma “narrativa mais ampla antivacinação sobre a perda de direitos e liberdades”, mais uma vez chamando censura sobre reclamações contra censura.
Em março de 2021, as recomendações de censura se voltaram contra o suposto “mau uso de relatórios e dados estatísticos oficiais”, “campanhas contra passaportes vacinais” e “medo de imunizações obrigatórias”.
O projeto, em vez de se ater a conteúdos individuais, também tinha como alvo personalidades inteiras. Uma conta identificada como “Valeria S.” foi denunciada com o reconhecimento de que “posta atualizações legítimas e verdadeiras sobre a Covid-19”, mas “ataca políticos italianos, a União Europeia e os Estados Unidos”.
O Viralidade também colabora com a preocupação do Partido Democrata americano sobre supostas influências russas, alegando que o ex-primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte era “altamente conectado” a uma “rede ligada aos russos”. Outro denunciado era o senador republicano Ron Johnson. “Quando pressionado”, diz o boletim, “o senador Johnson afirmou que ele não era antivacina e estava apenas ‘fazendo perguntas’ — uma tática usada por disseminadores de desinformação para se esquivarem de culpa”.
Matt Taibbi compara essa tática do projeto de denunciar indivíduos ao filme “Minority Report”, em que pessoas são punidas “pré-crime” após denúncia de videntes. As postagens de Robert Kennedy Jr., que atua contra vacinas em geral há muitos anos, foram rotuladas como "quase sempre denunciáveis". Independentemente de serem informações verdadeiras ou falsas, a atitude do Projeto Viralidade para com ele parecia ser atirar primeiro e perguntar depois.
Com o benefício do retrospecto, pode-se afirmar que o projeto estava errado a respeito de múltiplos assuntos em que presumiu que o conteúdo que denunciava era falso. Ele recomendou o silenciamento de postagens que falassem da proteção conferida pela imunidade natural, alegou que infecções com Covid-19 entre os vacinados eram "extremamente raras".
Uma das buscas por conteúdo censurável classificava como "conspiração" conteúdo que mencionasse um "Estado de vigilância", o que Taibbi considera irônico, já que o Projeto Viralidade foi formado em parte por agências federais do governo americano e ONGs que muitas vezes recebiam verbas públicas.
Em abril de 2022, o projeto sugeriu a uma dessas agências, parte do Departamento de Segurança Interna, que criasse uma seção especialmente dedicada a combater "desinformação". No dia seguinte, o departamento anunciou o Conselho de Governança da Desinformação, com a "especialista em desinformação" Nina Jankowicz como diretora executiva. Ela havia classificado como fake news a notícia do laptop de Hunter Biden, censurada pelo Twitter durante as eleições presidenciais. A notícia se revelou verdadeira. Ela atraiu a ira dos republicanos por esse histórico e por cantar uma paródia de uma música do filme "Mary Poppins" defendendo censura a conteúdo falso. O conselho foi interrompido em maio, e encerrado definitivamente em agosto. Mas o Projeto Viralidade, que parece ter sugerido sua criação, assumiu os trabalhos nos bastidores.
Entre os envolvidos no Projeto Viralidade estavam a empresa de análise de redes sociais Graphika, que recebe dinheiro do Departamento de Defesa (Pentágono); os acadêmicos de Stanford Renée DiResta e Alex Stamos, com conexões com a CIA; o Centro Pelo Público Informado (CIP), financiado pela Fundação Nacional da Ciência; e o Centro de Mídia Social e Política (CSMaP), da Universidade de Nova York. O projeto também disse nos documentos vazados que tinha parceria com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças e o gabinete do Cirurgião Geral dos Estados Unidos.
Na estimativa de Taibbi, o projeto secreto representa uma mudança de foco das autoridades americanas em informação, do contra-terrorismo estrangeiro para 80% de conteúdo doméstico monitorado.