A Argentina, que ainda vive um momento de turbulência econômica, pode estar prestes a enfrentar uma nova ameaça: a fragmentação monetária.
Na semana passada, o governo peronista reeleito da província de Buenos Aires, insatisfeito com o plano de ajuste fiscal anunciado pelo governo do novo presidente do país, Javier Milei, manifestou sua intenção de emitir suas próprias moedas, alegando que precisa de recursos para financiar seus gastos e programas sociais.
Buenos Aires é a província mais populosa e industrializada da Argentina. Desde 2019, ela é governada pelo peronista Axel Kicillof, que já foi ministro da Economia durante o governo de Cristina Kirchner (2007-2015) e faz oposição a Milei desde a campanha presidencial. O ministro de Governo de Buenos Aires, Carlos Bianco, afirmou por meio de uma entrevista concedida na semana passada que a “Constituição nacional e provincial permite que a província emita sua própria moeda”, e que essa é uma ferramenta que pode ser “usada pelo governo provincial se for necessário”.
Bianco disse que a emissão de uma moeda própria “não está sendo planejada no momento”, mas que será “avaliada” caso a província enfrente dificuldades de liquidez ou de crédito, diante dos cortes de fundos e programas federais anunciados por Milei. O ministro criticou o ajuste que classificou como “ortodoxo” do novo governo argentino, que incluiu uma forte desvalorização do peso, um aumento das tarifas públicas e uma redução dos gastos públicos e sociais. Segundo ele, essas medidas “prejudicam a indústria nacional e o povo argentino”.
Bianco defendeu os programas sociais criados pelo governo da província e disse que é “preciso contar com os recursos necessários para seguir fazendo as mudanças que o povo de Buenos Aires pediu nas urnas”.
Eduardo Jacobs, mestre em Filosofia da Economia pela Universidade de Cambridge, manifestou-se em uma entrevista à CNN Radio Argentina na sexta-feira (15) sobre a possibilidade da implantação de moedas paralelas, especialmente sobre a criação de uma "moeda própria" pela província de Buenos Aires. De acordo com Jacobs, “considerando os discursos e as ações do governador” Kicillof, é muito provável que a província “comece a emitir” moedas paralelas novamente.
O economista explicou que a província de Buenos Aires enfrenta neste momento desafios estruturais significativos, exacerbados pela gestão atual, que foi reeleita, que inclui a nomeação “excessiva de funcionários [públicos] sem a devida atenção às reformas necessárias”.
A ideia de emitir uma moeda própria na província de Buenos Aires não é nova, e já ocorreu em outras ocasiões de crise, como em 2001, quando a Argentina enfrentou uma grave recessão, uma moratória da dívida externa e uma revolta social que derrubou o presidente Fernando de la Rúa. Naquela época, a província lançou os chamados “Patacones”, que eram títulos emitidos pelo governo local que circularam como se fossem dinheiro normal. Os “Patacones” chegaram a ter um valor nominal equivalente a um peso, que na época era atrelado ao dólar, e foram usados para pagar os salários do funcionalismo público. Além disso, eles chegaram a circular entre os comerciantes e os consumidores, que os aceitavam voluntariamente ou por falta de alternativa.
Os “Patacones”, por alguns dias, chegaram a ter uma cotação superior ao peso, e foram aceitos em vários comércios e serviços, até serem resgatados em 2003 pelo governo de Eduardo Duhalde (2002-2003).
Os “Patacones” foram uma das mais de 10 moedas paralelas ou quase-moedas que surgiram na Argentina entre 2001 e 2003, emitidas por diferentes províncias que enfrentavam problemas de caixa e de financiamento. Essas moedas paralelas foram a via que as províncias encontraram para escapar da falência total em que estavam mergulhadas, já que não recebiam os repasses do governo federal e não tinham acesso ao crédito.
Além dos “Patacones”, existiu também o “Lecor”, da província de Córdoba; o “Federal”, da província de Entre Ríos; o “Cecacor”, da província de Corrientes; o “Quebrachos”, da província de Chaco; e o “Petrom”, da província de Mendoza. Essas moedas paralelas representaram, em seu auge, mais de 30% da circulação monetária na Argentina, e tinham diferentes graus de aceitação e de desvalorização, dependendo da credibilidade dos governos emissores. Na época, o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi um dos principais críticos dessas emissões, considerando-as como uma forma de “escapar do ajuste fiscal” que o organismo exigia.
A experiência das moedas paralelas na Argentina foi controversa e não ajudou a resolver integralmente a grave crise que o país enfrentava naquele momento. Por um tempo, elas chegaram a gerar uma preocupação, pois estavam começando a servir como uma fonte de inflação, de endividamento e de insegurança jurídica, bem como um fator para aprofundar o descontrole monetário.
As moedas paralelas também foram vistas como um sintoma de desintegração nacional e falta de ação do governo federal, que também chegou a emitir uma moeda própria por um tempo chamada de “Lecop”. Elas também criaram um problema para o comércio entre as províncias que adotaram diferentes tipos de moedas, que se desvalorizavam muito rapidamente.
Diferente do que afirmou Bianco, a Constituição Argentina em seu artigo 126 proíbe a emissão de moedas próprias pelas províncias, incluindo a de Buenos Aires, sem a autorização do Congresso. Esta responsabilidade atualmente é delegada ao Banco Central do país. Apesar disso, o ministro chegou a sugerir que mesmo assim poderia emitir moedas por meio de um pedido ao Banco Provincial de Buenos Aires, uma instituição que, segundo Bianco, possui uma "autorização especial" para realizar tal atividade.
Bianco argumentou que o Banco Provincial possui uma autorização única para criar sua própria moeda baseada no fato da instituição ter sido criada antes da inclusão de Buenos Aires na confederação argentina, que ocorreu por meio de um acordo firmado no século 19.
Jacobs descreveu a ideia da volta das moedas paralelas como um "quadro desolador", ressaltando que, se as províncias argentinas optarem por seguir caminhos independentes em termos financeiros, terão que “lidar com as consequências de suas escolhas”. Em sua visão, tais ações podem levar a resultados indesejados ou desafiadores, semelhantes aos problemas econômicos enfrentados durante a crise de 2001.
O economista ainda interpretou a possível adoção dessas moedas paralelas, principalmente por Buenos Aires, como uma forma de “rebelião”, uma “reação às políticas e circunstâncias atuais”, enfatizando que os cidadãos terão que “conviver com as repercussões das decisões políticas tomadas pela província”.
Atualmente, a Argentina não tem moedas paralelas em circulação, mas sim outras formas de dinheiro alternativo, como as criptomoedas, que ganharam popularidade nos últimos anos, especialmente entre os jovens.
Neste cenário, o site Yahoo! finanzas veiculou na semana passada a informação de que algumas províncias argentinas estariam também explorando a criação de suas próprias moedas digitais, que seriam atreladas a algum recurso natural ou econômico de seu território e que poderiam ser usadas para realizar operações comerciais, financeiras e fiscais. Essas moedas digitais seriam “diferentes” das criptomoedas, pois teriam o “respaldo e a regulação dos governos provinciais”, e não seriam baseadas em uma rede aberta e distribuída, mas em uma plataforma controlada e centralizada.
Segundo o site, províncias como Misiones, Jujuy e Córdoba já estudam a possibilidade de desenvolver tokens digitais apoiados por recursos locais, mas ainda enfrentam desafios legais e debates sobre sua viabilidade.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Deixe sua opinião