A se acreditar na versão oficial do governo russo, o presidente Vladimir Putin é um homem de posses modestas, que vive frugalmente, quase um asceta: ganha um salário anual de US$ 140 mil (R$ 722 mil), tem um apartamento de 74 metros quadrados, três carros e um trailer. Extraoficialmente, no entanto, diferentes fontes estimam sua fortuna na casa dos bilhões, dos muitos bilhões de dólares.
O economista sueco Anders Aslund é professor na respeitada Universidade Georgetown, em Washington D.C. Em 2019 escreveu o livro “Russia’s Crony Capitalism: The Path from Market Economy to Kleptocracy” [O Capitalismo Camarada da Rússia: O Caminho da Economia de Mercado para a Cleptocracia], publicado pela editora da Universidade de Yale. No livro, ele explica como o domínio da máquina estatal russa ajudou Putin e seus amigos a enriquecerem absurdamente, usando para isso informações privilegiadas, manipulação de ações nas bolsas, e extorsão pura e simples.
“À medida que a Rússia se tornou mais cleptocrática e autoritária, outra forma de enriquecimento da elite tornou-se mais importante – a saber, a extorsão pelo Kremlin e a aplicação da lei sobre os verdadeiramente ricos”, escreve. “Bill Browder argumenta que, após a condenação de Mikhail Khodorkovsky em 2005, Putin exigiu 50% da riqueza dos outros oligarcas. ‘Ele não estava dizendo 50% para o governo russo ou a administração presidencial, mas 50% para Vladimir Putin pessoalmente. A partir desse momento, Putin se tornou o maior oligarca da Rússia e o homem mais rico do mundo.” Isso é possível, mas não comprovado. O que sabemos de muitas entrevistas é que a extorsão do Kremlin é um procedimento padrão, e é pelo menos na casa das dezenas de milhões de dólares em doações para “caridade” de cada oligarca individual. As visitas ao Kremlin são caras, então a maioria dos oligarcas fica no exterior a maior parte do tempo. Grande parte da riqueza pertencente oficialmente aos oligarcas russos pode ser de propriedade ou pelo menos controlada por Putin.”
A fonte citada no livro de Aslund é o investidor americano Bill Browder, que comandou um fundo de investimentos na Rússia por 14 anos, onde lucrou bastante, até entrar em conflito com o governo Putin. Seu advogado, o russo Sergei Magnitsky, não viveu para contar a história. Foi preso, torturado e morto. Autor do livro “Alerta Vermelho - Como me tornei inimigo número 1 de Putin”, lançado no Brasil pela editora Intrínseca, Browder testemunhou no senado americano em 2017. “"O objetivo do regime de Putin tem sido cometer crimes terríveis para obter dinheiro”, afirmou. No mesmo depoimento ao senado, Browder, disse que a fortuna de Putin pode chegar aos US$ 200 bilhões (valor que se convertido para reais daria a incrível soma de mais de 1 trilhão), transformando Putin no homem mais rico do mundo, à frente de Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk.
Apoio e traição
Outro personagem citado é Mikhail Khodorkovsky, um ex-magnata do petróleo russo que ajudou Putin a se eleger presidente em 2000 junto com outros oligarcas à época, como Roman Abramovich (dono do clube de futebol Chelsea, da Inglaterra), e Boris Berezovsky (o homem por trás do dinheiro que montou o supertime do Corinthians campeão brasileiro de 2005, que tinha no elenco jogadores como Carlos Tevez e Javier Mascherano).
Khodorkovsky era dono da Yukos, a principal companhia petrolífera russa, ex-estatal, e junto com os outros oligarcas investiu dinheiro na eleição de Putin por temerem o adversário Gennady Zyuganov, que quase havia vencido Boris Yeltsin em 1996, e cuja principal plataforma era reimplantar o comunismo na Rússia — o que incluía reestatizar empresas como a Yukos, obviamente indo contra os interesses dos oligarcas.
Após vencer as eleições de 2000, Putin, no entanto, voltou-se contra seus financiadores. Khodorkovsky foi pra cadeia acusado por sonegação de impostos e assassinato, de onde só saiu em 2014, às vésperas das Olimpíadas de Inverno de Sochi, quando Putin o anistiou por causa da pressão da União Europeia. A prisão de Khodorkovsky, que hoje vive exilado em Londres, ajudou Putin a consolidar seu poder na Rússia. Depois do episódio, nenhum grande empresário russo mais ousaria se opor a ele.
"A vida de um escravo das galés"
Um dos mais ferrenhos adversários de Putin nas últimas décadas foi Boris Nemtsov, que escreveu, junto com Leonid Martynyuk, um livro de 32 páginas com os bens de Vladimir Putin, ao qual deram o título satírico “A vida de um escravo das galés”. De acordo com Nemtsov e Martynyuk, Putin tem à sua disposição 20 mansões, quatro iates de luxo (um deles, o Graceful, ficava ancorado na Alemanha, mas voltou para a Rússia duas semanas antes da invasão da Ucrânia), e uma coleção de relógios que vale US$ 600 mil. O livreto colocou os dois autores na mira de Putin. Nemtsov foi assassinado em plena luz do dia perto do Kremlin, em 2015. Martynyuk vive exilado desde 2014 em Nova York.
Stanislav Belkovsky, ex-consultor do governo russo, afirmou que o acúmulo de uma quantia tão grande de dinheiro e propriedades é uma forma de manter o poder. “Este é o princípio da plutocracia, o poder do dinheiro, que existe na Rússia hoje.” Aslunda complementa em seu livro: “Como os direitos de propriedade não são seguros na Rússia, você precisa de poder político ou fortes conexões políticas para manter a propriedade, o que exige muito dinheiro. Na Rússia de hoje, dinheiro é poder, e poder é dinheiro. Se você perder um, você pode perder muito. Pergunte a Khodorkovsky! Portanto, o grupo de Putin tenta manter ambos.”
De fato, Putin, após se livrar dos oligarcas que desejavam uma Rússia mais liberal e democrática, como Khodorkovsky, escolheu pessoas de confiança para tomarem o lugar da velha oligarquia. De acordo com Belkovsky, Putin amealhou US$ 40 bilhões nos primeiros oito anos de poder, principalmente por meio de seus camaradas, como Arkady Rotenberg, que ganhou contratos de mais de US$ 7 bilhões nas Olimpíadas de Sochi. Os irmãos de Arkady, Boris e Igor, também são bilionários. Rotenberg é dono de um resort em Sochi que vale, de acordo com estimativas, US$ 1,5 bilhão. Alexey Navalny, opositor de Putin que foi envenenado em 2020 e agora está preso, publicou um vídeo sobre a mansão no ano passado, que viralizou nas redes sociais russas, a chamando de "Palácio de Putin".
"Presente" de milhões de dólares
Um dos maiores exemplos de que o Kremlin mente sobre o patrimônio de Putin foi revelado no escândalo dos Panama Papers. Foi identificado um “presente” do empresário Suleiman Kerimov para Putin no valor de US$ 259 milhões de dólares. Não se sabe se Kerimov foi extorquido por Putin ou faz negócios com ele. De qualquer forma, Aslund estima em seu livro que se as saídas totais de capital da Rússia para o exterior (bancos estrangeiros, offshores e paraísos fiscais) desde 1991 totalizaram US$ 780 bilhões, o próprio Putin teria se apropriado mais de um quarto.
Por causa das sanções levantadas pelas potências ocidentais na semana passada, muito do patrimônio que Putin mantém fora da Rússia deve ficar congelado. Mas aparentemente ele ainda tem muita lenha — e dólares — para queimar.
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