Como justificativa para a neutralidade diante da invasão da Ucrânia, iniciada há duas semanas, o presidente Jair Bolsonaro (Partido Liberal) mencionou, na última quinta-feira (3), que a Rússia teria vetado a internacionalização da Amazônia na ONU (Organização das Nações Unidas) “em pelo menos dois momentos”. Durante sua transmissão semanal via YouTube, o presidente classificou os russos como “parceiros”.
“Em pelo menos em dois momentos, quando se discutia a questão climática, onde alguns chefes de estado conhecidos por todos nós quiseram discutir a soberania amazônica, um chefe de estado, no caso, o da Rússia, vetou aquela discussão e não se tocou mais no assunto, ou seja, nós temos parceiros hoje em dia que nos ajudam nessas questões”, disse Bolsonaro.
Não há, nas comunicações do Kremlin, nenhum registro de declaração ou pronunciamento do presidente russo nesse sentido. A única fonte da afirmação é o próprio Jair Bolsonaro, que viajou à Rússia no último mês de fevereiro, poucos dias antes da eclosão do conflito. Tampouco há relatos de que os chefes de Estado tenham tratado do assunto pessoalmente – o próprio Bolsonaro associou o suposto apoio russo ao veto de uma proposta da ONU. Quando foi, afinal, que Vladimir Putin se posicionou pela soberania amazônica?
Ocorre que, em dezembro de 2021, a Rússia vetou um projeto de resolução promovido pela Irlanda e por Níger no Conselho de Segurança das Nações Unidas, que previa o estabelecimento de uma relação entre mudanças climáticas e segurança mundial, uma proposta apoiada por 12 dos 15 membros do Conselho. O documento solicitava que os riscos de segurança relacionados ao clima (como desastres naturais supostamente consequentes destas alterações) fossem integrados como um elemento central nas estratégias gerais de proteção internacional.
O documento não faz nenhuma menção à Amazônia, especificamente, ainda que contenha inferências bastante questionáveis, como a relação entre mudanças climáticas a atividades terroristas.
“As regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas muitas vezes também sofrem de pobreza, governança fraca e atividade terrorista”, afirmou António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, ressaltando o caso do Mali, onde terroristas estariam explorando “as crescentes tensões entre pastores e agricultores para recrutar (novos membros)”, enquanto no Iraque e na Síria, o Estado Islâmico teria explorado a escassez de água. “A mudança climática tem um efeito multiplicador nessas situações”, disse o secretário.
A Rússia, então, vetou a resolução - sem qualquer menção à Amazônia. "A Rússia e a Índia, os dois países que votaram contra, não estavam preocupadas com o Brasil. A Rússia depende da produção de combustíveis fosseis e se beneficia do aquecimento, portanto políticas climáticas duras vão contra seus interesses nacionais", explicou, via Twitter, o professor do departamento de Engenharia de Produção da UFMG, Raoni Rajão. Seria este, portanto, o “apoio” de Putin caro ao presidente Bolsonaro.
A conversa sobre a internacionalização da Amazônia
O debate sobre a internacionalização da Amazônia não é novo e remonta à Conferência da ONU ocorrida no Rio de Janeiro em 1992, quando o então presidente da França, François Mitterrand, afirmou pela primeira vez que "o Brasil tem que aceitar a soberania parcial sobre a Amazônia". Ironicamente, a declaração foi endossada pelo presidente da extinta União Soviética, Mikhail Gorbachev.
Quase três décadas depois, Bolsonaro protagonizou um embate público com o presidente da França, Emmanuel Macron, que levantou a possibilidade de um estatuto internacional para proteger a Amazônia por causa das queimadas ocorridas em 2019.
Em maio do mesmo ano, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, havia dito que "essa história de que a Amazônia é patrimônio da humanidade (...) é uma grande bobagem", classificando a influência estrangeira sobre a região como "totalmente desnecessária e nefasta".
O debate sobre a suposta "internacionalização da Amazônia" já havia esquentado em 2015, quando a ONG Fundação Gaia Amazonas propôs a criação de um corredor ecológico unindo a parte chilena dos Andes, a floresta amazônica e o Oceano Atlântico – o chamado "Triplo A". Naquele ano, foi acatada por Juan Manuel Santos, então presidente da Colômbia, mas recusada pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Às vésperas de tomar posse da presidência, Bolsonaro pediu ao governo do ex-presidente Michel Temer que recusasse sediar a Conferência do Clima da ONU, para evitar que a pauta voltasse à mesa. Para ele, isso constituía uma ameaça à soberania nacional.
Outra teoria discutida com frequência é a de que a demarcação de terras indígenas poderia, no futuro, levar ao desmembramento do território brasileiro e a criação de países indígenas na região da Amazônia.
Segundo a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, elaborada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 2007, os indígenas têm direito ao autogoverno. Para muitos militares, potências estrangeiras interessadas nas riquezas da floresta brasileira poderiam usar o documento para levar adiante o projeto de internacionalização da Amazônia por meio da exigência de independência de territórios ocupados por povos indígenas.
Contudo, para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo à época da fala de Macron, a teoria não tem fundamento. "Como é que as Nações Unidas vão chegar e dizer: 'Vamos transformar a terra ianomâmi num território separado'? O Brasil não é um país que está de joelhos para a ONU. Nós temos 210 milhões de pessoas. Não tem a mínima chance de alguém se meter e dizer que quer o território ianomâmi como território próprio. O medo dos militares é infundado", afirmou Mércio Gomes, presidente da Funai durante o primeiro mandato de Lula (2003-2007).