Em meio a diversas acusações de fraudes eleitorais, incluindo imagens de pessoas depositando mais de uma cédula nas urnas, Vladimir Putin foi reeleito como Presidente da Federação Russa, sem surpresas. Nas eleições realizadas no domingo (18), Putin recebeu mais de 56 milhões de votos, 76,6% de um total de mais de 73 milhões de votos. Esse número representa um comparecimento de 67,5% do eleitorado registrado.
Com a vitória, Putin poderá presidir a Rússia, nas atuais regras, até 2024, quando somará quase 25 anos à frente do país. Dos líderes russos e soviéticos no século XX, Putin superará os 22 anos de governo de Nicolau II, ficando atrás apenas dos trinta anos de governo de Stálin.
Consolidada a posição de Putin como principal figura da Rússia, quais os principais desafios internacionais para seu novo mandato?
Oriente Médio: Obter estabilidade perene
Como esclarecido em texto anterior na Gazeta do Povo, hoje a Rússia ocupa o posto de única potência com trânsito entre todos os atores médio-orientais. A efusiva congratulação pela vitória eleitoral por parte de Benjamin Netanyahu, Primeiro-ministro de Israel e aliado dos EUA, exemplifica isso. Essa posição implica uma necessidade e uma possibilidade. A possibilidade é a de expandir parcerias econômicas e financeiras. Investimentos bilionários sauditas na Rússia já foram acordados, além de cooperação em hidrocarbonetos.
No campo de exportações, o know-how russo nas áreas de armamento e tecnologia nuclear também são capitalizados. Nos últimos meses, foram assinados acordos para a construção de uma usina nuclear em Akkuyu, na Turquia, e outra no Egito; o contrato egípcio é especulado no montante de vinte e cinco bilhões de dólares. Com os dois países também foram acordadas vendas bilionárias de equipamento militar, como os novíssimos sistemas antiaéreos S-400 para a Turquia, que justificou sua compra com críticas aos EUA, que se negaria em vender equipamentos de sensibilidade similar.
O caso da crescente proximidade entre Rússia e Egito é mais importante e curioso do que uma visão superficial permite. Curioso pois o Egito era aliado soviético até o final da década de 1970, quando rompe suas relações em favor de uma proximidade com os EUA, que dura desde então. Os encontros de Putin e al-Sisi, líder egípcio, trataram do uso russo de bases aeronavais egípcias, incluindo a de Mersa Matruh, justamente uma ex-base soviética no Mediterrâneo. É especulada até a presença de tropas de elite russas no Egito, lutando contra grupos jihadistas.
Isso é importante pois, provavelmente, significa interesse russo em expandir sua presença no Norte da África, onde a Rússia não é ator de grande importância desde o fim da Guerra Fria. A cooperação russo-egípcia não possibilita apenas contratos polpudos, mas um maior papel russo nos vizinhos instáveis Sudão, Eritreia e, principalmente, Líbia. Desde a operação da OTAN para a derrubada de Muammar Kadafi, o território líbio está fragmentado, com sua infraestrutura praticamente destruída em sua totalidade.
A Rússia de Putin poderia, na Líbia, participar da reconstrução da economia e do Estado, obtendo ganhos em contratos na exploração do petróleo e vendas de armamentos. Um eventual governo centralizado e autoritário líbio, que conseguisse controlar todo o território pelo uso da força, não sofreria condenações por parte dos russos. Finalmente, uma crescente influência russa em outros países produtores de petróleo serviria para o controle do preço da commodity, evitando quedas na economia russa como a que ocorreu recentemente.
Para obter mais vantagens e colher frutos de seu protagonismo no Oriente Médio, a Rússia necessita de um cenário regional de estabilidade minimamente perene, que viabilize investimentos de larga escala. Entretanto ali está um problemático ponto focal de relações enredadas, onde a Rússia precisará consertar diferentes interesses, de seus aliados e de outros atores. A Síria.
Governado por Bashar al-Assad - aliado russo - , o país enfrenta uma situação que está longe de ser resolvida. A Rússia continuará a ter papel na política síria graças, justamente, à intervenção armada russa. O futuro político da Síria possui relação com oito principais atores políticos, sem mencionar atores menores ou com interesses específicos. Um desses exemplos é Israel, cujo interesse na Síria é apenas um, bem claro: evitar presença militar iraniana em sua fronteira.
Contextualizar todo o conflito sírio requeriria um espaço próprio. Resumidamente, os oito atores podem ser divididos em externos e internos. Externamente, a própria Rússia, o Irã, a Turquia e os EUA. Internamente, as facetas dessas potências. O regime Assad, ligado aos russos; os grupos xiitas centralizados no Hezbollah, aliado iraniano; as Forças Democráticas Sírias, amálgama de grupos sunitas, opositores e turcomanos, ligadas ao governo turco; finalmente, as forças curdas, com apoio dos EUA e relações de conveniência com o regime Assad e com a Rússia. Sem mencionar grupos jihadistas.
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Além dessas partes, existem interesses econômicos externos, especialmente da China, que já obteve contratos para a reconstrução da Síria, como o restabelecimento de redes de telefonia celular no país. Se a Rússia é, hoje, o principal ator no Oriente Médio, pivô das conversas de paz para a Síria em Astana e em Sochi, ela precisa harmonizar uma dezena de interesses muitas vezes conflitantes.
Por exemplo, no caso dos curdos, que desejam autonomia, mesmo que dentro da Síria. Tal autonomia vai totalmente contra os interesses turcos, que apenas recentemente normalizaram suas relações com o governo russo. Outra contradição é o desejado papel iraniano na reconstrução síria, para compensar o montante investido no conflito, concorrendo com chineses e os próprios russos.
Um acordo perene e satisfatório na Síria será o principal desafio internacional para Putin, que corre o risco de perder o protagonismo ganho na região. Relações entre a Rússia e outros envolvidos podem ser prejudicadas, caso seja necessário afastar um aliado que se sinta pouco contemplado ou caso sofra resistência de outros atores, que venham a clamar por outros mediadores, como os EUA. Se Bismarck disse que não se deve sacrificar a nação no altar de uma aliança, Putin terá que ir além e preservar os interesses russos enquanto lida com várias alianças na mesa de negociação.
Ocidente: Imagem e necessidade
A mais recente rachadura nas relações entre Rússia e o Ocidente é a suspeita de envolvimento direto do Estado russo no envenenamento do espião russo Sergei Skripal e sua filha Yulia, em território britânico. Como consequência, o Reino Unido anunciou que ativos de propriedade do Estado russo em território britânico estão congelados, que haverá maior fiscalização de vôos e navios originários da Rússia, suspensão de relações de alto nível, criação de um novo centro de defesa contra armas químicas e o boicote da Copa do Mundo 2018 pelas autoridades britânicas e a família real.
Um grave retrocesso nas relações, incluindo acusações diretas contra Putin feitas pelo Ministro de Relações Exteriores britânico, Boris Johnson. Esse episódio soma-se a outras suspeitas de assassinatos dentro de território britânico, à crise da anexação da Crimeia e do conflito na bacia do Donets (habitualmente referida como Donbass, transliteração do russo), além da investigação sobre interferência cibernética russa no processo eleitoral dos EUA. No conjunto de todos esses episódios, o distanciamento entre Ocidente e Rússia é cada vez maior.
Por um lado, a imagem russa é afetada negativamente. Isso favorece tanto a narrativa de Putin, de ser um defensor da Rússia, quanto a narrativa Ocidental, de ver na Rússia como seu principal antagonista. Por outro lado, uma melhora dessa relação seria interessante para todos os envolvidos. A Europa, especialmente a Alemanha, é importante comprador de gás natural e petróleo russo. A Rússia, embora tenha na China um cliente cada vez mais voraz, tem infraestrutura que permitiria cada vez mais negócios com a Europa.
Além disso, diminuir o nível de tensão e de desconfiança contribuiria para a retomada de acordos internacionais sobre armamentos estratégicos. O novo START (em inglês, sigla para Strategic Arms Reduction Treaty, Tratado de Redução de Armas Estratégicas) expira em fevereiro de 2021 e, no atual contexto, dificilmente será prorrogado até 2026, como o texto do documento possibilita. Ao contrário, a renovação de arsenais nucleares está ocorrendo em ambos os lados dessa relação.
Pode-se interpretar que Putin possui na Copa do Mundo um trunfo de relações públicas em escala mundial, para exibir a cultura russa, mostrar seu país como um destino interessante para turismo e investimentos, além de se encontrar com líderes mundiais. Embora isso não possa ser descartado, é improvável a presença de diversos dos principais líderes mundiais. No caso de Donald Trump, por exemplo, a seleção de futebol dos EUA sequer irá disputar o torneio. Caso Putin e a diplomacia russa desejem melhorar as relações com o Ocidente, talvez precisem de algo mais do que o torneio.
Economia: Solução externa para problema interno
O distanciamento entre Rússia e Ocidente, independente das razões de cada um dos atores, afetou diretamente a crise do rublo e do sistema financeiro russo. A economia russa foi gravemente afetada pelas sanções ocidentais contra dezenas de indivíduos e empresas russas. Isso inclui as gigantes russas do setor energético, controladas pelo Estado. O desempenho ruim da economia russa foi um dos temas frequentemente abordados por Putin em pronunciamentos e em programas de entrevistas.
Nas vésperas da eleição, o governo russo instruiu o Primeiro-ministro Dmitri Medvedev e a economista Elvira Nabiullina, que chefia o banco central russo, para elaborarem um plano de medidas econômicas até 15 de julho. Também participaria dessa “força-tarefa” econômica Alexei Kudrin, ex-Ministro de Finanças conhecido por suas perspectivas liberais. Em seu programa de governo e no seu discurso de Estado da União, Putin destacou o combate à pobreza, melhoria de infraestrutura e aumento do financiamento do sistema público de saúde.
Embora a economia russa esteja se recuperando da crise, e as sanções internacionais tenham até mesmo colaborado para o fortalecimento doméstico de alguns setores, numa espécie de protecionismo à revelia, o país perdeu muitas divisas em ouro e em moeda estrangeira. Além disso, deixou de ser visto como um destino interessante para muitos investidores, especialmente ocidentais. Caberá ao novo governo Putin buscar novas alternativas e parceiros no cenário internacional.
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Além das situações já citadas no Oriente Médio, o papel da China na economia russa tende a ganhar relevância nos próximos anos. Xi Jinping, recentemente reeleito indiretamente líder da China e agora sem limite de mandatos, também enviou uma pública e veemente mensagem de congratulações pela eleição de Putin. A União Econômica Eurasiana e a Organização de Cooperação de Xangai serão focos não apenas geopolíticos, mas também financeiros.
Mais do que o mero fluxo de investimentos e de projetos, o governo russo provavelmente buscará fortalecer ainda mais um novo sistema internacional de pagamentos e de fluxo bancário, paralelo ao dólar. O sistema bancário russo já opera um sistema próprio, Mir, em paralelo ao mundialmente estabelecido SWIFT, vetor de parte das sanções. Além disso, desenvolve em parceria com a China um novo sistema cujo objetivo final é permitir comércio internacional em moedas nacionais, enfraquecendo a influência do dólar - e por consequência, dos EUA.
Caso as regras não se alterem, talvez seja o último mandato de Vladimir Putin como mandatário russo. Putin terá 72 anos de idade em 2024 e somente poderia concorrer novamente ao cargo de presidente em 2030; nesse caso, tornaria-se o mais velho líder russo, posto que hoje é de Konstantin Chernenko, que assumiu o cargo aos 72 anos em 1984. Os desafios internacionais de seu novo mandato não passam apenas pelo cenário atual, mas também influenciarão como Putin será visto no futuro, qual será seu legado político e quem serão seus sucessores.
*Filipe Figueiredo é graduado em História pela Universidade de São Paulo e comenta política internacional no blog Xadrez Verbal.
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