“A nossa casa está queimando”. Foi com este comentário do presidente da França, Emmanuel Macron, sobre os incêndios na Amazônia, postado nas redes sociais junto a uma foto antiga, que se iniciou um duelo de acusações entre o mandatário francês e o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. À parte das gafes - para dizer o mínimo - cometidas por ambos os lados, Macron chegou a cogitar a “conveniência de conferir um status internacional” à floresta caso os líderes da região (a Amazônia se estende por nove países) tomem decisões prejudiciais ao planeta.
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“A questão é tal no plano climático que não podemos dizer 'este é um problema só meu'”, justificou Macron nesta segunda-feira (26).
Os comentários se transformaram em uma crise diplomática e ganharam especial atenção da imprensa internacional pois se desenrolaram durante o encontro dos líderes dos sete países mais desenvolvidos do mundo, o G7, composto pela França, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Reino Unido, Japão e Canadá. Macron era o anfitrião e foi o primeiro a pedir que os incêndios na Amazônia fossem debatidos durante a cúpula multilateral, por se tratar de uma “crise internacional”.
Três motivos ajudam a explicar o interesse aparentemente repentino de Macron quanto aos incêndios na Amazônia.
Pontos em casa
A Europa Ocidental, de uma forma geral, preza muito pelas questões de caráter ambiental. Um exemplo de como esse tema tem se tornado cada vez mais importante para a política de lá está na eleição do Parlamento Europeu de maio deste ano, que mostrou um crescente apoio aos Partidos Verdes, especialmente na Alemanha. Na França, o meio ambiente também tem sua importância. Em 2017, ajudou a eleger Macron. E agora, ajuda a recuperar a sua popularidade em casa.
Macron começou sua presidência, em maio de 2017, com um crédito de popularidade muito alto. Um ano depois, porém, o carisma do jovem político perdeu efeito e seu governo entrou em crise. Entre escândalos frequentes, Macron tentava aprovar uma agenda de reformas que lhe rendeu o apelido de “presidente dos ricos”. Mesmo sob protestos, porém, Macron mudou a legislação trabalhista, facilitando a contratação e demissão com o objetivo de tornar o mercado de trabalho francês mais flexível e dinâmico, e também reformou a lei do imposto sobre fortunas, reduzindo a contribuição a ser paga pelos mais ricos. As mudanças foram possíveis porque ele conta com o apoio da maioria no parlamento.
Nesse período também houve questionamentos sobre sua postura pró-meio ambiente. O primeiro ministro da Ecologia do governo Macron, Nicolas Hulot, abandonou a administração dizendo que as ações do presidente não condiziam com seu discurso quando o assunto era mudança climática - um de seus compromissos políticos. Hulot estava frustrado quanto à falta de agilidade do governo para resolver questões preocupantes na França, como a imensa dependência da energia nuclear (75% da energia consumida no país vem de termelétricas nucleares), e a proibição do agrotóxico glifosato, na época adiada pelo lobby agrícola na Comissão Europeia - mas que em janeiro deste ano foi adotada após decisão da justiça francesa. Segundo o site G1, a gota d’água para Hulot foi a redução, pela metade, do preço da licença de caça na França, um hobby praticado por 1,2 milhão de franceses.
Tudo isso desgastou muito Macron, mas sua liderança ficou realmente fragilizada quando estouraram os protestos dos “coletes amarelos”, em meados de novembro de 2018. Em um movimento popular espontâneo, milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o aumento de impostos sobre combustíveis, uma medida que havia sido anunciada por Macron como parte de um plano para reduzir a emissão de gases poluentes e combater as mudanças climáticas. Porém, quando Macron voltou atrás nessa decisão, o estrago já estava feito. O movimento se fortaleceu e começou a protestar contra outras pautas, como por exemplo, as políticas sociais e fiscais do governo.
Para converter a situação e tentar levar adiante a reforma da previdência, que ainda não foi votada, no início deste ano Macron abriu uma gigantesca consulta popular para que todos os franceses tivessem a oportunidade de externar suas queixas, sugestões e críticas ao governo - uma medida que, na visão do professor de história da Universidade de Brasília (UnB), Estevão Chaves de Rezende Martins, foi um golpe de mestre.
Os protestos continuaram acontecendo semanalmente, mas perderam força e até apoio da opinião pública - muito devido à violência causada por black blocs infiltrados entre os manifestantes. Como o processo de consulta é longo, o governo francês ainda não apresentou as conclusões. Martins acredita que, com o fim das férias de verão, em setembro, os franceses estarão mais dispostos a voltar a pressionar o governo em pautas como aumento da renda média, aumento do poder de compra de aposentados e pensionistas, mais oportunidades de emprego e preservação dos postos de trabalho. Por conta disso - e com uma reforma da previdência para aprovar -, o segundo semestre não promete ser nada fácil para o presidente da França. Ao se colocar na posição de “salvador da Amazônia” enquanto as coisas estão mais calmas na política interna, Macron está estocando popularidade para os próximos desafios que deve enfrentar.
O grande líder mundial
Mas não é só o interesse doméstico que motiva o discurso eloquente de Macron quanto à Amazônia. O presidente da França busca se colocar como uma grande liderança na Europa e no mundo, depois de muitos anos em que esse papel foi da chanceler alemã Angela Merkel. “A Amazônia é um tema global e grande parte do mundo consegue enxergar valor nisso e concordar com ele. Então dessa maneira ele se posiciona como uma liderança europeia e, portanto, mundial”, diz o professor e analista de Política Internacional Tanguy Baghdadi.
Mas isso não vem de hoje. Em 2017, Macron marcou sua estreia na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao fazer uma defesa emocionada e triunfante da globalização e do multilateralismo. Imediatamente ele passou a ser visto como a antítese do colega americano Donald Trump e sua política da “América em Primeiro Lugar”, o que para alguns pode ser visto como uma vantagem para sua imagem.
O multilateralista nacionalista
O terceiro ponto que explica o interesse de Macron pelos incêndios na Amazônia é uma contradição à sua postura de “defensor do multilateralismo”. Ele está usando o argumento das queimadas para barrar o acordo comercial Mercosul-União Europeia, o qual ainda precisa da aprovação dos parlamentos de todos os países dos dois blocos.
Na sexta-feira passada, antes do encontro do G7, Macron disse que a França se colocaria contra o acordo comercial, porque o presidente Jair Bolsonaro tinha mentido e não havia cumprido as demandas ambientais assumidas durante o encontro do G20 em Osaka, no Japão, em junho - isso por causa da reação lenta do governo brasileiro quanto aos incêndios na floresta amazônica e por causa das notícias que saíram na imprensa internacional de que o número de focos de incêndios florestais havia aumentado significativamente sob a administração Bolsonaro.
Mas Baghdadi lembra que a postura negativa do governo francês quanto ao acordo comercial Mercosul-UE não é de agora. “Está claro para todo mundo que a França, desde o início, não queria o acordo. A França decidiu aceitar assinar porque todo mundo estava aceitando, mas quatro dias depois que o acordo foi assinado, a França deu uma declaração por meio de um porta-voz dizendo que iria avaliar com muito cuidado e atenção os termos”, conta Baghdadi.
Esse posicionamento se deve à pressão interna. A França é um país muito industrializado, mas ainda tem uma produção agrícola importante e muitas famílias que dependem do setor primário, uma parte importante da economia francesa está no campo. Portanto, ao permitir que os produtos sul-americanos entrem no mercado europeu sem muitas barreiras tarifárias, os agricultores franceses se sentiriam prejudicados, já que os produtos agrícolas de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai tendem de ser mais competitivos. “É uma situação bem diferente da Alemanha, por exemplo, que não tem produção agrícola, não se interessa por isso e está a favor da abertura de mercado”, compara Baghdadi.
“É uma posição sem dúvida contraditória”, avalia Baghdadi. “Querer o multilateralismo de um lado, em relação à Amazônia, e ao mesmo tempo ser contrário a um acordo comercial dessa monta. E mais contraditório ainda é justificar a possibilidade de não fechar o acordo comercial, que é uma questão um tanto nacionalista, com o discurso absolutamente multilateral, que é a questão da Amazônia”, conclui.
“Isso faz com que o governo francês navegue entre esquerda e direita, nas pressões desse jogo político, mas isso acaba desgastando muito”, diz Martins.
Uma ação contra a soberania do Brasil?
Quanto às declarações de Macron sobre a consideração de um “status” internacional para a Amazônia, analistas políticos acreditam que se trata muito mais de um instrumento retórico para reforçar os três motivos já citados aqui, do que propriamente uma “ameaça à soberania brasileira”.
“O Brasil, e nesse ponto acho difícil discordar com Macron, não pode fazer o que quiser com a Amazônia, porque a floresta é um bem comum, de todos. Mas não parece que há qualquer tipo de proposta minimamente mais pensada de tirar a Amazônia da soberania brasileira. É uma possibilidade remota e descabida”, diz Bahgdadi.
Martins tem o mesmo posicionamento e lembra que o acordo do clima de Paris deu uma espécie de vocação ao presidente da França de querer ser o campeão da defesa dos interesses ecológicos do mundo - não apenas ao Macron. “As queimadas sempre foram um pretexto para as pessoas dizerem que o mundo virá abaixo porque tudo está pegando fogo. É um assunto fácil de utilizar na plataforma internacional para dizer que você está preocupado com a saúde internacional do planeta e que você é o ‘Capitão França’ da defesa dos interesses ecológicos”.