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América do Sul

Qual o tamanho da crise argentina?

Diante da crescente inflação na Argentina, crescem os mercados de trocas, como o de Monte Grande | EITAN ABRAMOVICH/AFP
Diante da crescente inflação na Argentina, crescem os mercados de trocas, como o de Monte Grande (Foto: EITAN ABRAMOVICH/AFP)

22 de novembro de 2015. Com quase 13 milhões de votos (51,4% dos votos válidos), o empresário Mauricio Macri era declarado o novo presidente da Argentina. Uma vitória histórica. Pela primeira vez desde que se instituiu o voto direto no país, um candidato de direita liberal foi eleito sem apoio da ditadura, fraudes ou candidatos proscritos. Chegava ao fim um período de 12 anos do kirchnerismo, regime comandado pelo casal Néstor e Cristina Kirchner, que deixou o país com um baixo índice de crescimento econômico, inflação crescente e alta rejeição popular. 

“É um dia histórico. Uma mudança de época. Um tempo que não pode deter-se em revanches ou ajustes de contas. Construir uma Argentina com pobreza zero, derrotar o narcotráfico e melhorar a qualidade democrática”, afirmou Macri em discurso após a confirmação da vitória nas urnas. Entre as propostas do novo presidente para alavancar a economia estavam a abertura a investimentos estrangeiros, diminuição da inflação para um dígito em dois anos e aumentar as exportações do setor agropecuário. A euforia tomou conta não apenas de uma grande parcela dos argentinos, como de lideranças de outros países. 

Setembro de 2018. Menos de três anos depois da eleição histórica, a euforia se transformou em tensão e desesperança. Com o peso (moeda oficial do país) desvalorizado mais de 50% em relação ao dólar, inflação na casa dos 30% e a taxa de juros elevada recentemente para 60%, os argentinos se veem mergulhados em uma grave crise econômica que nem de longe remete ao discurso otimista de Mauricio Macri. Na expectativa de um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para tentar estancar o caos, o país teme reviver o fatídico ano de 2001, quando vivenciou uma das piores crises de sua história, que provocou violentos protestos nas ruas e levou à queda de dois presidentes. 

Dois graves problemas: estagnação e inflação alta

Razões para temer o pior não faltam. A Argentina vive hoje o que os economistas denominam estagflação, que é a junção de dois graves problemas: estagnação econômica e inflação alta. 

“Desde o fim do ano passado as políticas cambial e monetária entraram em um período errante e o dólar não parou de subir desde então, o que levou a uma aceleração de preços e consecutivas corridas contra o peso”, diz um relatório do Observatório de Políticas Públicas da Universidade de Avellaneda. Na prática, enquanto os preços sobem, os salários caem. Segundo o mesmo relatório, entre 2015 e 2018, o salário mínimo sofreu desvalorização de 54%, enquanto o salário médio apresentou uma redução de 17%. 

Nos últimos meses, as manifestações populares têm se intensificado nas ruas de Buenos Aires e outras cidades argentinas. No último dia 13, milhares de professores fizeram uma paralisação de 24 horas e, junto com estudantes e outros trabalhadores, realizaram uma grande manifestação por melhores salários e em protesto contra as medidas de austeridade do governo Macri. 

Para esta terça-feira (25) está marcada uma greve geral no país, a segunda no ano e a quarta desde que Macri assumiu o poder. Nas redes sociais, circulam vídeos de supostos saques que estariam ocorrendo em lojas e supermercados. 

 Equívocos e má sorte 

A combinação que levou a Argentina novamente à beira do colapso é um misto de medidas equivocadas do atual governo com uma dose de má sorte. Nesse último quesito estão a valorização do dólar, que fez investidores tirarem dinheiro de países emergentes, e uma seca severa, que elevou o preço dos alimentos e reduziu o volume de exportações de grãos. O presidente, que já havia adotado medidas impopulares – como reajustar tarifas de energia e transporte, e mexer na previdência e nas leis trabalhistas – decidiu recorrer ao FMI. 

Em junho, Macri anunciou um resgate do fundo no valor de US$ 50 bilhões (cerca de R$ 206 bilhões), divididos entre US$ 15 bilhões repassados de imediato e o restante parcelado até 2021. Não deu resultado. Como resposta, anunciou no início do mês novas medidas, que incluíam o corte de metade dos ministérios e uma nova taxação sobre as exportações

Além disso, o governo negocia com o FMI a antecipação para 2019 dos US$ 35 bilhões a receber. Segundo o Ministério da Fazenda, até março o governo Macri havia acrescentado US$ 90,8 bilhões à dívida do país. Até 2017, a dívida externa argentina consumia 22,7% do Produto Interno Bruto (PIB), porcentual mais alto entre os países emergentes. 

Para Luis Fernando Ayerbe, professor de História e Relações Internacionais da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Macri se elegeu com uma promessa “demasiado otimista”. “Ele passou a confiabilidade de que resolveria rapidamente um dos grandes problemas da Argentina, que é a inflação alta. Acontece que os investimentos estrangeiros não vieram, a inflação não foi controlada e a economia cresceu pouco”, observa. Ele acrescenta que, apesar de o governo ter credibilidade junto à comunidade internacional, a instabilidade econômica faz com que investir no país não seja um negócio atraente. 

Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Andrés Ernesto Ferrari Haines, acredita que o atual governo “vendeu promessas fáceis” e acabou se iludindo. 

A partir do momento em que não conseguiu adiar a adição de medidas econômicas mais duras, Macri optou por escolher a quem sacrificar e, por decorrência, a quem pouparia. Na minha perspectiva, a sua opção foi por beneficiar a especulação financeira, particularmente a cambial, em detrimento da produção e do emprego, que ficaram mais expostos às pressões competitivas externas em um momento especialmente complexo e incerto da economia mundial.

 Perspectivas 

Por mais que o aporte de recursos do FMI venha a evitar uma recessão ainda pior, as perspectivas para 2019 não são nada animadoras. Após as últimas medidas anunciadas pelo governo, o ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, disse que a meta para o ano que vem é zerar o déficit fiscal, com a previsão de encerrar 2018 com uma inflação de 48%. Os especialistas, por sua vez, acreditam que a tendência é o país seguir em recessão. 

“A partir de agora, o nível de ajuste exigido em nome do FMI não só aumentou, mas, também, faz transparecer que o governo se tornou um posto de comando das demandas do Fundo. Para piorar, como Macri sempre se esquivou de enfrentar a realidade e vendeu um quadro róseo, produziu-se uma situação em que a sociedade o contesta a partir da perspectiva, equivocada na minha visão, de que ajustes não são necessários, mas, sim, frutos das demandas do FMI. Assim, o conflito social está muito alto e o apoio ao governo é frágil”, sentencia Andrés. 

 Turbulência política 

A iminência de uma crise que se arrasta rumo a 2019 traz preocupação dobrada para o presidente Mauricio Macri. Afinal, em outubro do ano que vem os argentinos vão às urnas eleger o próximo presidente e, ao que tudo indica, o atual mandatário vai em busca da reeleição. Nas eleições legislativas de 2017 Macri deu mostras de força ao manter maioria no Congresso, mas um agravamento da crise pode colocar em risco um novo mandato.

Segundo Ayerbe,

Ele [Macri] teve de reconhecer o fracasso naquela que foi sua grande promessa, de melhorar a economia. Sua tarefa maior será chegar ao final do mandato com uma situação pelo menos estável.

Não bastasse a crise econômica, a Argentina também sofre com uma grave crise política. Na última semana a Justiça pediu a prisão preventiva da ex-presidente e atual senadora Cristina Kirchner, acusada de chefiar uma organização criminosa que tinha como objetivo arrecadar propinas milionárias de empresários por meio de obras públicas. O escândalo denominado “Cadernos da corrupção”, veio à tona no início de agosto, apoiado em uma investigação que apontou um esquema que teria operado entre 2005 (no governo de Néstor Kirchner, marido de Cristina, morto em 2010) e 2015. 

 Brasil vai sentir efeitos diretos e indiretos 

 Para os brasileiros, a grande pergunta que fica mais uma vez é: até que ponto a crise argentina afeta o Brasil? Em um primeiro momento, o impacto direto é na balança comercial. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do país, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Só no setor automotivo, por exemplo, as exportações do Brasil para o país vizinho correspondem a 75% do total. 

Por enquanto, os números não mostram impacto da crise por aqui. Dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços indicam que, de janeiro a agosto, os argentinos consumiram 7,28% das exportações brasileiras. O volume corresponde a uma alta de 1,11%, com saldo favorável ao Brasil de US$ 4,28 bilhões. Mas, em entrevista à Agência Brasil, o presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico Antonio Servideo, disse que desde abril vem ocorrendo uma desaceleração da atividade econômica entre os países. 

Leia também: Crise e corrupção minam as forças dos principais políticos argentinos

“A capacidade de consumo das famílias argentinas vai ser, significativamente, afetada pela crise cambial e pelas medidas de contenção de despesas e da taxação sobre as exportações”, afirmou Servideo, que projeta uma queda de 20% nas encomendas argentinas nos últimos quatro meses de 2018. 

O professor Luis Fernando Ayerbe, da Unesp, acredita que o risco maior para o Brasil não está exatamente na crise que afeta a Argentina, mas nos fatores que contribuíram para agravar a situação do país. Com a valorização mundial do dólar, tanto o peso argentino quanto o real brasileiro perderam valor, o que afasta investidores estrangeiros. A proximidade entre os dois países pode contribuir com essa reticência. “O Brasil também tem sua própria crise, que não é tão grave porque as nossas reservas são maiores. Mas o quadro geral barateia as exportações e diminui a competitividade. Ou seja, um país não ajuda o outro”, explica Ayerbe.

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