A nora de Rahima, uma refugiada rohingya, ficou gravida após ser violentada por soldados do exército de Mianmar| Foto: REBECCA CONWAY/NYT

No campo de refugiados, Noor nunca tinha o suficiente para comer; por isso confundiu o que sentia com a fome, mas quando percebeu o movimento mais insistente, não foi possível ignorar a presença do feto. 

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 Ela conta que os soldados de Mianmar, em seus imponentes uniformes verdes, a haviam estuprado, durante vários dias, no ano passado, primeiro em sua casa na aldeia, e depois na floresta. Então, junto com outros 700 mil muçulmanos rohingyas, ela fugiu para Bangladesh, onde agora vive no maior assentamento de refugiados do mundo. 

 E carrega agora uma lembrança da campanha brutal dos militares de Mianmar para acabar com uma minoria indesejada através do massacre, do estupro e dos vilarejos incendiados. O bebê, concebido durante uma explosão de violência contra os rohingyas, que os funcionários da ONU disseram ser um genocídio, faz com que tudo seja impossível de esquecer. 

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Arma de guerra

Todo mundo nos campos de refugiados rohingyas em Bangladesh sabe dos estupros e de como os militares de Mianmar, durante décadas, usaram a violência sexual como uma arma de guerra, particularmente contra grupos étnicos que não são da maioria budista da nação. 

 Eles sabem também que não é culpa das mulheres e meninas, que muitas vezes eram estupradas sob a mira de uma arma, com mães, irmãs ou filhas chorando e gritando ao lado. 

 Porém, na sociedade muçulmana tradicional dos rohingyas, o estupro traz vergonha às famílias. Todas as gestações resultantes dele são vistas como uma desgraça ainda maior, de acordo com os conselheiros que trabalham nos campos de refugiados. 

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 Como resultado, muitas sobreviventes sofrem duas vezes – primeiro o trauma da violência sexual, e depois o ostracismo de uma sociedade conservadora que as abandona quando mais precisam de apoio.  É impossível saber quantos bebês concebidos por estupro em Mianmar estão nascendo nos campos. A maioria das mulheres escolhe ter o bebê em seus abrigos, não em clínicas médicas, por isso não há um registro detalhado dos nascimentos. 

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 No entanto, os trabalhadores de saúde que operam nos campos falam curiosamente de um pico de nascimentos que coincide com estupros no final de agosto até setembro do ano passado, o período mais intenso de violência contra os rohingyas. "Vimos muito mais nascimentos em maio e junho do que em outros meses. Todo mundo está perguntando se isso é por causa de estupro. Não conseguimos pensar em outra explicação", disse Hamida Yasmin, parteira de Bangladesh que trabalha nos acampamentos. 

Discriminação

Em uma sociedade que normalmente aceita bem as crianças – ter seis, sete ou oito é comum entre as famílias –, esses recém-nascidos são tratados de forma diferente. 

 Os traficantes vieram para cá dizendo que podem aliviar as mulheres de seus bebês indesejados. Se uma criança nasce muito clarinha, a mãe acaba ouvindo que isso é o resultado de um pai da maioria étnica Bama de Mianmar. "Todo mundo admite que isso está acontecendo, mas ninguém quer admitir que aconteceu com sua família", disse Mohammad Ali, bengalês que monitora o funcionamento dos campos rohingyas. 

 A partir do momento em que sua barriga começou a crescer, Noor, que como os outros nesta história está sendo identificada apenas pelo seu primeiro nome para sua proteção, se escondeu em seu abrigo de lona, fugindo do julgamento dos outros.  Ela é solteira e não sabe exatamente quantos anos têm, embora seus avós estimem que tenha entre 16 e 18 anos. "Só os meus pais sabem a minha idade, mas eles já morreram", disse Noor. 

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 Seu pai foi morto, no ano passado, quando eles tentavam escapar dos soldados que atacaram sua aldeia em Buthidaun, no Mianmar. Seu nome está em uma lista de baixas compilada por grupos de direitos humanos. Sua mãe está desaparecida, considerada morta. 

 O irmão de Noor, de 10 anos, está vivo, mas os parentes adultos sobreviventes decidiram que o menino não pode ser associado à vergonha de sua irmã; assim, ele vive com uma tia, em outro campo de refugiados. "Eu não quero que ele tenha problemas por minha causa", disse Noor. 

 A última vez em que ela viu o irmão foi há alguns meses, quando já não podia esconder sua barriga, que estava muito grande. Ele lhe trouxe um presente: um pacote de biscoitos que ela comia no escuro sufocante de seu abrigo.  "Ele sabe que eu gosto, então me deu. Acho que ele ainda me ama, apesar de ter vergonha de mim", disse Noor. 

Desespero

Muitas sobreviventes de estupro interromperam a gravidez quando chegaram a Bangladesh. Metade da mulheres tratadas por estupro nas clínicas dos campos de refugiados, geridas pelo grupo Médicos sem Fronteiras, tinha 18 anos ou menos. Várias não tinham nem 10. Como Noor, algumas garotas não entendiam o que essa violência poderia fazer com seus corpos. 

 Em outros casos, porque a desnutrição e o trauma podem interromper o ciclo menstrual, as meninas não percebem que estão grávidas até que seja tarde demais. Mesmo para aquelas que percebem, uma falta crônica de cuidados médicos em Rakhine – parte do sistema de apartheid infligido pelas autoridades em Mianmar – deixou as mulheres desconfiadas, evitando as clínicas onde poderiam discutir suas escolhas. 

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 Em vez disso, nos acampamentos, algumas confiaram em poções ou em abortos com métodos improvisados, que podem causar um choque séptico.  "As mulheres desesperadas fazem qualquer coisa", disse Dildar Begum, parteira rohingya que disse saber de pelo menos duas que morreram por causa de abortos mal feitos. 

 Quando os vizinhos suspeitam da origem de um bebê, a humilhação pode ser sufocante. No campo de refugiados Kutupalong, por exemplo, duas mulheres estavam isoladas nos fundos de um abrigo.  Nesse ambiente melancólico, elas – uma prestes a dar à luz e a outra sua sogra – torciam as mãos e olhavam para o espaço. 

 Violência

Os soldados haviam chegado à sua aldeia, contou Jesmin, a grávida, como faziam sempre nos municípios rohingyas do norte de Rakhine: queimando casas, atirando indiscriminadamente, reunindo mulheres em grupos. Treze pessoas foram mortas em seu vilarejo, de acordo com grupos de direitos humanos. 

 A sogra de Jesmin, Rahima, foi levada com ela, sob a mira de uma arma. Aquelas que resistiram ao estupro, disse Rahima, recebiam coronhadas na cabeça e eram violadas mesmo assim. 

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 Dias antes do parto, Noor continuava escondida nos fundos de seu abrigo, sobrevivendo com um pouco da comida que recebia por ser refugiada. Ela decidira que o bebê seria entregue a um traficante humano quando nascesse. Esperava que o parto fosse rápido, para que qualquer evidência pudesse desaparecer em poucas horas. "Eu quero me casar e não posso fazer isso se tiver um filho", disse Noor. 

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 A cada dia, o bebê chutava Noor com mais força. Em seus pesadelos, ela ainda via os homens de verde com seus rifles.  Sua gravidez nunca foi monitorada por uma equipe médica, mas ela já tinha ouvido dizer que nos campos de Bangladesh havia médicos com curas mágicas. Noor ficou intrigada. 

 "Você acha que eles têm uma pílula para a tristeza? Eu queria tomar uma pílula dessas depois que o bebê nascer", perguntou ela, suas mãos embalando a barriga. 

 

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