O feitiço virou contra o feiticeiro. Esse ditado popular pode ser aplicado na prática ao ex-guerrilheiro Daniel Ortega, que tenta, sob uma forte repressão que já causou 351 mortes (incluindo a da brasileira Raynéia Gabrielle Lima) – de acordo com levantamento da Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos -, sobreviver aos protestos que já duram cem dias e manter-se no poder. É uma situação contrária à de 39 anos atrás, quando foi um dos líderes da revolução que resultou na queda do ditador Anastácio Somoza, cuja família deteve o poder no país centro-americano entre 1937 e 1979.
As raízes políticas de Ortega estão na luta contra a ditadura da família Somoza. Nos anos 60, quando era estudante, participou dos movimentos urbanos de resistência contra o governo. Em 1963, entrou no movimento sandinista, surgido em universidades nicaraguenses nos anos 50 e inspirado em Augusto César Sandino – um líder carismático que liderou uma rebelião nacionalista contra a ocupação americana do país centro-americano, entre 1922 e 1934 – e na Frente de Libertação Nacional (FLN) – movimento de tendência nacionalista e socialista, que governou a Argélia como partido único entre 1962 e 1989. E, em meados dos anos 60, foi estudar em uma universidade soviética, em Moscou.
Quatro anos após aderir ao sandinismo, do qual se originou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), Ortega foi preso pelas forças da ditadura, acusado de roubar um banco. Só foi libertado em 1974, quando viajou para Cuba. Lá recebeu treinamento de táticas de guerrilha do governo comunista de Fidel Castro. Nos anos seguintes, reorganizou o grupo e foi um dos líderes da revolução que tirou a família Somoza do poder.
Dali para chegar ao poder foi só um passo. Ortega foi o principal líder da Junta de Reconstrução Nacional, multipartidária, e que ficou no comando do país até 1984. Neste ano, o país promoveu eleições gerais e foi eleito presidente, com 67% dos votos. No seu mandato, promoveu a nacionalização de empresas e reforma agrária, e adotou programas de alfabetização e de redistribuição.
As relações de Ortega com os Estados Unidos sempre foram tensas, mesmo este país tendo fornecido ajuda à Nicarágua no início dos anos 80. A ruptura veio em meados dessa década, quando o grupo de Ortega começou a enviar armas a grupos rebeldes de inspiração marxista em El Salvador, que enfrentava uma pesada guerra civil. E os EUA passaram a apoiar os Contras, um movimento rebelde anticomunista que lutava contra Ortega e a FSLN.
Apesar de ter recebido treinamento na União Soviética e em Cuba, até hoje, segundo o cientista político americano Kai Thaler, professor assistente de Estudos Globais da Universidade da Califórnia em Santa Barbara (EUA), é difícil saber o quão profundamente Ortega foi comprometido com o marxismo-leninismo.
“Apesar de sua forte retórica anti-imperialista, ele era integrante da tendência mais moderada dos sandinistas, buscando cooperação com o setor empresarial e com a sociedade civil.”
Ele começou a se afastar do marxismo-leninismo e do programa histórico da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) no início dos anos 90, quando perdeu a presidência para Violeta Chamorro. “Houve uma grande divisão e reavaliação no movimento. Muitas figuras importantes saíram da frente”, diz a historiadora Hilary Francis, da Universidade da Northumbria (Inglaterra).
Hábil estrategista
Nas eleições seguintes, em 1996 e 2001, tentou voltar ao poder, mas não conseguiu. Nesse período, firmou-se como um hábil estrategista político. Ortega sabe manejar bem o “tabuleiro de xadrez” da política nicaraguense, diz Benjamin Waddell, professor associado de sociologia do Fort Lewis College (EUA).
“Após sua terceira derrota consecutiva (em eleições presidenciais), em 2001, o ex-guerrilheiro parecia ter pouco futuro político na Nicarágua. Ele se candidatou três vezes à presidência e cada vez a resposta era a mesma: 60% das pessoas preferiam outra opção.”
Waddell aponta que em cada um dos cargos que Ortega exerceu – guerrilheiro, político e presidente – se caracterizou por ser cauteloso e prudente. “Sempre soube o momento certo para agir.”
Para o ex-guerrilheiro, o momento chegou durante a presidência de Arnoldo Alemán (1997-2002), que foi acusado de roubar milhões de dólares em seus cinco anos de mandato. Ortega aproveitou o ponto fraco de Alemán e assim que seu sucessor, Enrique Bolaños (2002-2007) tomou posse, Ortega começou a pressionar o Legislativo, exigindo que Alemán fosse preso.
O ex-presidente ficou mais de um ano em prisão domiciliar, enquanto esperava para saber o resultado do processo judicial contra ele. Alemán ficou entre a cruz e a espada, explica o professor do Fort Lewis College.
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“A única saída que tinha era formar um pacto político com Ortega, e foi exatamente isso que ele fez.” Segundo Waddell, Ortega prometeu parar de perseguir Alemán por corrupção, se este conseguisse, entre os conservadores, os votos necessários no Legislativo para mudar as regras eleitorais.
E assim aconteceu. Alemán conseguiu a liberdade e Ortega os votos de que precisava no parlamento para mudar a Constituição. A partir de então, qualquer candidato concorrente nas eleições presidenciais só precisaria de 35% dos votos para evitar um segundo turno. Antes, eram necessários 40%
O resultado dessa estratégia veio em 2006. Com pouco mais de 38% dos votos, Ortega retornou ao poder depois de 16 anos. Para chegar ao poder, ele também teve que adotar uma imagem mais moderada. E o caminho, de acordo com Thaler, foi o de construir alianças com importantes grupos da sociedade nicaraguense, como a Igreja Católica e grupos de evangélicos.
E apesar de hoje criticar duramente os Estados Unidos, acusando-os de liderar uma “conspiração direitista” para tirá-lo do poder, Ortega e as Forças Armadas da Nicarágua cooperaram com os Estados Unidos na luta contra as drogas e para deter o fluxo de imigrantes desde Cuba ou que passavam pelo Panamá e pela Costa Rica.
Ao assumir o cargo, diz o professor da Universidade da Califórnia, o ex-guerrilheiro foi muito pragmático. “Retoricamente, ele parecia esquerdista e construiu relações sólidas com Venezuela e Cuba.” Aproximou-se também de outras importantes lideranças da esquerda na América Latina, como o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
A conexão venezuelana foi importante para o país centro-americano, o que lhe garantiu petróleo a preços subsidiados e empréstimos que eram pagos com produtos nicaraguenses vendidos a preços acima do mercado.
Política econômica
Uma das estratégias de Ortega, no comando da Nicarágua, foi o de estabelecer uma política econômica que objetivasse expandir as relações comerciais e aumentar a importância das exportações na economia. Isto ajudou a manter apoio dos empresários. O país firmou-se como um hub para o segmento de call-center, prestando serviços para empresas dos Estados Unidos e da América Latina
A situação econômica no país melhorou muito. Ortega conseguiu muita coisa, diz Waddell: “melhorou drasticamente a qualidade da infraestrutura, ampliou o emprego, apoiou os setores mais marginalizados da sociedade com programas destinados a combater a pobreza e atraiu a chegada de investimentos estrangeiros, incluindo milhões de dólares para o turismo.” Mas o preço foi caro. Enquanto impulsionava o crescimento econômico, centralizava o poder político.
A combinação da ajuda venezuelana e abertura econômica promovida por Ortega contribuiu para um forte crescimento a partir de 2007. Nos dez anos seguintes, a economia cresceu ao ritmo anual de 4,1%, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesse período, só não houve expansão do PIB em 2009, em decorrência da forte crise mundial.
Parte dos recursos provenientes da Venezuela foi aplicada em programas destinados a reduzir a pobreza. Dados do Banco Mundial apontam que o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza caiu de 48,3% da população, em 2005, para 24,9%, em 2016.
É praticamente impossível mensurar o impacto da ajuda venezuelana na melhoria das condições. “Os fundos não eram fornecidos de forma transparente”, diz Hilary Francis, da Universidade de Northumbria. O que é certo, segundo ela, é que estes recursos permitiram que Ortega fortalecesse sua posição com certos grupos, via programas sociais, e facilitou o estabelecimento de conexões no mundo dos negócios.
Kai Thaler, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, diz que:
Estes projetos sociais, apesar de impactantes em um país extremamente pobre, não receberam a maior parte dos recursos necessários, em comparação com a riqueza acumulada por Ortega e seus sócios. Grande parte da ajuda venezuelana foi canalizada para as contas de empresas e funcionários do FSLN e de Ortega.
Segundo o jornal Confidencial, importações de petróleo eram forjadas e os recursos eram direcionados para uma cooperativa controlada pela FSLN. Os recursos, originários da petrolífera venezuelana PDVSA foram usados sem nenhum tipo de controle. Um estudo feito pelo FMI indica que, entre 2008 e 2012, 62% dos recursos enviados pela Venezuela foram usados em projetos que enriqueceram 60 empresas privadas constituídas sob a influência ou controle de Ortega. Somente 38% foram aplicados em projetos sociais.
Domínio político
Ao mesmo tempo em que a economia nicaraguense florescia, Ortega procurou consolidar-se no poder ao lado de sua esposa, Rosario Murillo, a atual vice-presidente. Gradualmente, a FSLN passou a dominar todas as instâncias de poder. “As instituições são controladas por um pequeno grupo ligado ao presidente”, diz Hilary Francis, da Universidade de Northumbria.
As ações para o aparelhamento do Estado começaram com a indicação de juízes para os tribunais. O passo seguinte foi assumir o controle total da Corte Eleitoral. “Isto possibilitou que, em 2008, a FSLN ocupasse todo o parlamento”, afirma Waddell. Os partidos de oposição passaram a enfrentar fortes restrições, o que contribuiu para inibir o debate político. O Supremo Tribunal (equivalente ao STF brasileiro) deu, em 2009, carta branca para a reeleição de Ortega.
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E com isso, a qualidade da democracia nicaraguense caiu. Em 2008, segundo o Índice da Democracia elaborado pela Economist Intelligence Unit (EIU), o país centro-americano era classificado como uma democracia imperfeita. Nove anos depois, um regime híbrido, bem próximo de se tornar autoritário.
Segundo a Freedom House, a eleição do líder sandinista começou um período de deterioração da democracia que permanece até hoje. E Thaler vai além. Ele acredita que, no cenário atual, a Nicarágua já está vivendo uma ditadura.
Perda de prestígio
A forte repressão aos protestos contra a reforma previdenciária, em abril, contribuiu para afastar um dos principais aliados de Ortega: as entidades empresariais. Por anos, os dois lados mantiveram uma relação de cooperação.
“O presidente os consultava em decisões de política econômica e o empresariado o apoiava, como alguém que poderia garantir a estabilidade, o crescimento e evitar uma revolução como a que ocorreu em 1979”, destaca Thaler.
Mas a situação mudou em abril, quando o ex-guerrilheiro decidiu promover cortes nas pensões e aposentadorias. Os empresários se mostraram insatisfeitos por não terem sido consultados e protestaram contra a repressão.
Outro importante apoio perdido foi o da Igreja Católica. Ortega era bem próximo do cardeal Miguel Obando y Bravo, o principal líder do catolicismo nicaraguense entre 1970 e 2005 e com muita influência depois que se tornou arcebispo emérito de Manágua. Eles partilhavam da mesma agenda social cristã.
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Mas o professor da Universidade da Califórnia ressalta que, a partir da aposentadoria do cardeal, uma nova geração chegou aos principais postos do episcopado do país centro-americano. “Emergiram lideranças mais liberais dentro da Igreja.”
Tanto é que, ao mesmo tempo em que apoia os manifestantes, a Igreja Católica tenta negociar uma saída para a crise política do país. Uma das principais reivindicações é a antecipação das eleições para 2019, algo que Ortega já descartou. O cardeal Leopoldo Brenes, atual arcebispo de Manágua, foi uma das figuras-chave no processo de mediação para liberar estudantes universitários que foram encurralados por forças do governo e paramilitares em uma Igreja, entre os dias 13 e 14.
“A sociedade chegou a um ponto de explosão”, diz Benjamin Waddell. Segundo ele, desde que chegou ao poder, o presidente nicaraguense foi muito cuidadoso para não usar a violência para se impor no cenário político.
Em vez de usar armas e força, Ortega recorreu à manipulação tática, mas, em 18 de abril, a situação ficou fora de controle, deixando o governo com poucas alternativas. Naquele dia, as pessoas perderam o medo de sair às ruas e a única maneira de manter o poder era por meio da força.
A morte da galinha dos ovos de ouro
A crise política acabou matando a galinha dos ovos de ouro. Se, em abril, antes de se iniciarem os protestos, o FMI projetava que o ritmo de crescimento iria permanecer forte até 2023, à taxa média anual de 4,5% ao ano, hoje, a realidade é outra. Agora, o Banco Central estima um crescimento entre 0,5% e 1,5% em 2018, condicionado a não manutenção da crise ao longo deste trimestre. Se ela se mantiver, o tombo será maior: retração de 2,5%, de acordo com cálculos da Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Econômico e Social (Funides).
“As agitações foram prejudiciais para a economia”, destaca a historiadora Hilary Francis. Todos os setores foram afetados. Thaler traça um panorama:
O comércio parou, pois o trânsito tornou-se mais complicado devido a bloqueios nas estradas e incertezas sobre quando e onde as forças do governo poderiam atacar os manifestantes. Os cidadãos estão em casa por medo. Houve várias greves nacionais. Uma grande quantidade de recursos foi enviada para o exterior e foram feitas pesadas retiradas de dinheiro dos bancos. A indústria de turismo da Nicarágua foi duramente atingida. Há escassez de gasolina e outros bens essenciais em grande parte do país.
Independente de Ortega permanecer ou não no poder, reconstruir a economia, após cem dias de protestos, vai ser problemático. “Se ele continuar no poder, o governo provavelmente continuará enfrentando sanções. A indústria do turismo provavelmente continuará em baixa”, diz o professor da Universidade da Califórnia.
E se ele cair, aponta ele, será difícil conter a fuga de capitais da família Ortega e de integrantes da FSLN. “Haverá incerteza em relação aos muitos segmentos da economia em que a família Ortega, a FSLN e as autoridades consolidaram grandes investimentos”, complementa.