Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou o início da invasão à Ucrânia, em 24 de fevereiro, líderes religiosos do mundo inteiro não tardaram a comentar o ocorrido. No mesmo dia, o patriarca Ecumênico Bartolomeu I de Constantinopla, chefe da Igreja Católica Ortodoxa, telefonou para o Primaz da Igreja Ortodoxa da Ucrânia para expressar sua “profunda tristeza por esta flagrante violação de qualquer noção de direito internacional e legalidade”, bem como seu apoio ao povo ucraniano, vítima de um ataque “não provocado”.
O próprio metropolita Onufry, à frente da Igreja Ortodoxa Ucraniana ligada ao Patriarcado de Moscou, defendeu a “soberania e a integridade” do país, apelando ao presidente russo que “pare imediatamente a guerra fratricida”. “A guerra entre esses povos é uma repetição do pecado de Caim, que matou seu próprio irmão por inveja”, condenou o sacerdote.
O papa Francisco, por sua vez, compareceu pessoalmente à embaixada da Rússia no Vaticano para propor negociações de paz, telefonou para o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e anunciou que vai consagrar os dois países ao Imaculado Coração de Maria, um gesto bastante simbólico que, para os católicos, remonta à batalha contra o comunismo no século XX.
As duras reprimendas a Putin só são não foram ouvidas do próprio Cirilo de Moscou, patriarca da Igreja Ortodoxa da Rússia. Pelo contrário: tão logo o presidente russo deu início à invasão, o líder ortodoxo se manifestou pedindo paz, mas sem esconder seu alinhamento ao discurso religioso do chefe de Estado. Primeiro, pediu que "Deus não permita que uma terrível linha de sangue dos nossos irmãos seja traçada entre a Rússia e a Ucrânia" e que "proteja a terra russa contra inimigos externos".
Depois, se voltou contra o Ocidente, afirmando que "para entrar no clube daqueles países é preciso fazer uma parada do orgulho gay". Em carta ao Conselho Mundial das Igrejas, culpou a OTAN pela situação da Ucrânia: "Este conflito não começou agora. Estou firmemente convencido de que seus promotores não são os povos da Rússia e da Ucrânia, que são unidos em uma fé comum e compartilham um destino histórico". Segundo ele, a guerra é "parte da estratégia geopolítica desenvolvida, em primeiro lugar, para enfraquecer a Rússia".
As falas do patriarca desencadearam uma série de críticas por parte das lideranças religiosas – e até um princípio de racha na própria Igreja Ortodoxa da Rússia, dada a reação oposta da Igreja Ucraniana que lhe é submissa (entenda, aqui, a história das duas igrejas). Segundo o portal Crux Now, desde o começo da guerra, ao menos 15 dioceses ortodoxas russas deram permissão para que seus párocos deixem de mencionar o nome de Cirilo nas celebrações litúrgicas.
Nas múltiplas análises que se seguiram à polêmica, o primaz é apontado como leal aliado de Putin - há quem diga que é capaz de influenciar o presidente. Mas quem é, afinal, Cirilo de Moscou e qual é seu poder na Rússia?
De Leningrado ao luxo
Nascido em Leningrado (atual São Petersburgo) em 1946, Vladimir Mikhailovich Gundyayev foi eleito patriarca em 2009 pelo sínodo da Igreja Ortodoxa Russa, recebendo o título de “Cirilo I, Patriarca de Moscou e de toda Rus’” (ou seja, de todo o território da antiga Rus’: Rússia, Ucrânia e Belarus).
Foi o primeiro patriarca a ser eleito após a queda da União Soviética, herdando de seu antecessor, Aleksei II (1990-2008), uma igreja que recuperava seu papel central no país após o fim do ateísmo estatal da União Soviética.
"Ele já teve seu próprio programa semanal de televisão sobre temas religiosos, e tem a reputação de, neste sentido, um tipo mais moderno de religioso. Apesar de não poder ser considerado ecumenista, aceitou encontrar-se com o Papa Francisco, causando escândalo em certos setores mais conservadores da Igreja Ortodoxa", explica o jornalista e iconógrafo Daniel Sender, especialista em religiões orientais.
De fato, dentro do meio ortodoxo, Cirilo é considerado um homem relativamente aberto ao diálogo: encontrou-se e beijou a mão do papa Bento XVI em 2007, e não compartilha da opinião comum entre seu público de que católicos romanos são hereges - classificação que se aplicaria somente aos dissidentes ortodoxos (como é o caso da Igreja da Ucrânia, separada de Moscou e reconhecida em 2019). Encontrou-se com Francisco em Havana e, na última quarta-feira (16), conversou com o pontífice por vídeo sobre a guerra na Ucrânia.
Em suas terras, Cirilo conta com sua própria lista de polêmicas: na década de 1990, seu nome apareceu em uma série de reportagens sobre empresas supostamente ligadas à Igreja Ortodoxa, mas nada foi confirmado. Vez ou outra surgem rumores sobre uma mansão na Suíça e um palácio na Rússia.
Em 2012, uma foto do patriarca circulou a internet, enquanto ele ostentava um relógio Breguet - avaliado em mais de 200 mil dólares - no pulso esquerdo. À época, o primaz chegou a dizer que "nada sabia" do acessório e, subitamente, uma versão da foto sem o objeto começou a aparecer na imprensa. No reflexo da mesa, o relógio continuava visível.
Anticomunista, anticapitalista e pró-Putin
Em se tratando de sistemas político-econômicos, o patriarca Cirilo de Moscou condena tanto o comunismo quanto o capitalismo. Em entrevista à Forbes francesa publicada em outubro de 2021, afirmou que ”a transformação do capitalismo e do marxismo em uma espécie de nova quase-religião é igualmente inaceitável”.
“Nós, que passamos a era do comunismo, sabemos bem que a ideia de justiça social, transformada em ideologia agressiva, destrói tudo ao nosso redor. Centenas de milhares executados ilegalmente por sua fé, a criação de um gueto social para classes hostis - esta é a realidade do ‘paraíso comunista na terra’”, completou o sacerdote, para depois frisar que “não menos perigoso é o ‘evangelho capitalista’, que considera a queda do comunismo como prova de sua impecabilidade e sem alternativa”.
Com relação a Vladimir Putin, Cirilo declarou, antes das eleições presidenciais de 2012, que a prosperidade e estabilidade que a Rússia desfrutou desde que Putin assumiu o poder nos anos 2000 foi um “milagre de Deus”. Cinco anos depois, o ex-agente da KGB faria um discurso no Conselho dos Bispos da Igreja Ortodoxa Russa, discorrendo sobre o papel da Igreja Ortodoxa desde o batismo de São Vladimir até a contemporaneidade, mostrando o valor da instituição para a sociedade russa enquanto fomentadora e mantenedora da “estabilidade e unidade”.
No mesmo dia, contudo, o patriarca Cirilo criticou a excessiva influência do Estado sobre os assuntos internos da Igreja durante sua história, agradecendo ao governo por não intervir nos assuntos da Igreja.
“Embora os termos de ambos os discursos tenham sido amigáveis, é possível ver que há uma espécie de aviso para que o Estado não intervenha em assuntos eclesiásticos que não lhe dizem respeito”, explica Sender. “De forma geral o governo de Putin vê, desde o ponto de vista político, a Igreja Ortodoxa como um importante órgão inspirador da identidade nacional e do patriotismo, onde o clero deve conduzir a Igreja e a Igreja deve ajudar e ser parceira do Estado”.
O primaz, por sua vez, conforme demonstrado desde o princípio da guerra, compartilha das impressões de Putin acerca do "destino espiritual" da Ucrânia. O que vemos nas palavras do patriarca Cirilo é que ele considera a divisão entre os atuais países da antiga Rus’ – Ucrânia, Rússia e Belarus – como uma tragédia semeada desde fora, nominalmente por países do Ocidente que ao longo da história buscaram afastar estes três povos irmanados para enfraquecê-los”, acrescenta o especialista.
“É provável que questões pragmáticas impeçam que ele considere seriamente a reunião dos três países em um único organismo, um único Estado – uma nova e renascida Rus’ –, mas sem dúvidas existe a ideia de que se há um destino comum e manifesto entre as três nações, realizado espiritualmente pelo Patriarcado de Moscou”.
Ao contrário do que alardeiam alguns observadores, entretanto, a influência de Cirilo sobre Putin não é tão grande assim: segundo o analista George Sokora, da Universidade de Harvard, ainda que a Igreja Ortodoxa tenha recuperado prestígio e posses desde a queda da União Soviética, a instituição “teve surpreendentemente pouco sucesso em perseguir seus objetivos políticos quando estes não coincidiam com os interesses do Kremlin”. Em outras palavras: no fim das contas, é Putin quem dá as cartas.
“É, portanto, errôneo ver a Igreja Ortodoxa como uma espécie de estatal russa; do mesmo modo, é ingênuo supor que ela tenha muito poder para alcançar objetivos políticos a despeito do Estado”, explica Sender.
“Em linhas gerais, pode-se dizer que a verdade se encontra em algum lugar no meio destes termos, uma vez que o governo russo se apoia na Igreja como elemento fundador e legitimador da identidade nacional russa, e a Igreja conta com o Estado para defender sua posição preponderante de árbitro moral da sociedade russa”.
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