No começo de setembro, causou polêmica um vídeo em que o ditador venezuelano Nicolás Maduro se delicia com um steak de cordeiro preparado pelo chef-celebridade Salt Bae em Istambul, Turquia. O valor do prato chega a custar US$ 275. Na mesma semana, em Maracaibo, centenas de pessoas faziam fila no mercado Las Pulgas para comprar carne estragada, única opção disponível a quem quisesse ingerir proteína. O produto vinha sendo vendido mais barato por conta dos sucessivos cortes de energia que afetam a segunda maior cidade do país.
A cena de um bem-nutrido Maduro e de sua esposa, Cilia Flores, desfrutando um banquete e fumando charutos cubanos, é um duro contraste com a realidade venezuelana. Em 2017, 64% dos cidadãos perderam em média 11 quilos. Enquanto a maioria dos 31,5 milhões de venezuelanos passa fome, um seleto grupo vive em um universo à parte. São chamados boliburgueses, termo alusivo a indivíduos que enriqueceram ao manter íntimas relações com o chavismo – primeiro, com o governo Hugo Chávez, entre 1999 e 2013; depois, sob o comando de Maduro.
Os burgueses-bolivarianos parecem não ter assimilado que a bonança do país ficou no passado, restrita ao boom do petróleo na primeira década dos anos 2000. Eles seguem frequentando restaurantes chiques, usando roupas de grife e pilotando carros importados. Não poupam em viagens a Miami, Nova York ou Paris.
“Chávez e Maduro desapareceram com quase toda a classe média, mas tem gente que ainda vive muito bem, que consome produtos importados e movimenta milhões de dólares”, diz a jornalista Daisy Galaviz, do portal venezuelano El Pitazo .
E não é só na Venezuela ou nas férias que os boliburgueses costumam esbanjar. Parte deles ajudou a inflacionar o mercado imobiliário de Madri, onde o preço dos imóveis subiu 17% em 2017. Na capital espanhola, há pelo menos 7 mil apartamentos de luxo pertencentes a venezuelanos. Alguns deles, é verdade, saíram do país sul-americano antes de Chávez ou então para fugir dele. Já outros mantêm residência dos dois lados do Atlântico e dependem do governo para seguir aproveitando o jet set internacional.
“Seja em Caracas ou em San Cristóbal, nos fins de semana os lugares mais luxuosos, os restaurantes mais caros estão sempre cheios. Há locais onde não se sabe de crise alguma”, afirma Galaviz.
Ela cita o restaurante La Esquina, um dos mais exclusivos de Altamira, bairro rico da capital. Lá, nas quintas e sextas-feiras “abundam camionetes blindadas”, segundo a jornalista. Outro lugar frequentado pela nata venezuelana é o Buddha Bar, badalada franquia parisiense onde é possível comer sushi ou beber drinks por valores que superam o salário de um trabalhador médio.
De fato, a vida dos boliburgueses não condiz em nada com o que se vê em uma nação falida. Números recentes, divulgados durante assembleia da ONU, mostram que no país 87% das pessoas são pobres, 61% estão em situação de pobreza extrema e 55% das crianças com idade até cinco anos padecem de subnutrição.
Problema crônico
Segundo a ONG Transparência Internacional, a Venezuela ocupa a 169º colocação entre os 180 países que compõem o Índice de Percepção da Corrupção 2017 – o Brasil é o 96º. No olho desse furacão está a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), que responde por 96% das divisas do fisco nacional. Recentemente, o Ministério Público venezuelano ordenou a prisão de nove diretores e ex-diretores de subsidiárias da estatal por suposta fraude envolvendo a compra de tanques de transporte de combustíveis.
O caso é apenas um entre centenas, talvez milhares: desde agosto de 2017, 90 funcionários da petroleira foram processados por esquemas de corrupção. Entre os denunciados está Rafael Ramírez, presidente da PDVSA na gestão de Chávez e ex-embaixador da Venezuela na ONU. O figurão é dono de imóveis em bairros nobres de Madri e controla um conglomerado de empresas sediadas em paraísos fiscais.
Outro boliburguês conhecido na Espanha é Nervis Villalobos, ex-ministro de Energia na Venezuela. Lá, ele possui salas comerciais em zonas tradicionais de Madri e chegou a comprar uma fazenda de 772 hectares em Monteagudo de las Salinas. O povoado de 150 habitantes é conhecido como parada de peregrinos que percorrem o Caminho de Santiago de Compostela.
Além de inflacionar negociações, corrompendo agentes públicos e se aproveitar de relações estratégias para lotear estatais, há outras maneiras de enriquecer ilegalmente na Venezuela. “Muita gente também fez dinheiro com a Comissão Nacional de Administração de Divisas, a Cadivi, e montaram suas próprias empresas”, explica Galaviz.
Ela se refere ao órgão do governo que regula a venda de dólares a câmbio oficial para importações e viagens turísticas. Estima-se que, desde 2003, quando foi implantada, a Cadivi tenha sofrido o desvio de pelo menos US$ 25 bilhões.
A corrupção na Venezuela é um problema antigo, que antecede o próprio chavismo, segundo o cientista político Eduardo Viola, professor na Universidade de Brasília (UnB). Ele diz que a América Latina ostenta um quadro geral de predominância de um empresariado que depende do Estado. É o que chama de “capitalismo de compadrio”.
Na Venezuela, esse laço tem se fortalecido há décadas graças ao petróleo. “O modelo vinha de antes, mas as condições de saque do Estado e da PDVSA pelos membros do partido, com as Forças Armadas, cresceram extraordinariamente na era Chávez”.
Na visão do professor, o bolivarianismo dizimou muitas empresas. “E o que não foi destruído foi saqueado, confiscado ou apropriado com recursos da corrupção.” Entre aqueles que se beneficiam de relações promíscuas com o poder aparecem militares, funcionários públicos, políticos e gente que fornece produtos e serviços ao governo.
Um exemplo desse tipo de prática veio a público em agosto, quando o ex-banqueiro alemão Matthias Krull fechou um acordo de delação premiada com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O executivo admitiu ter participado de um esquema para lavar cerca de US$ 1,2 bilhão de recursos provenientes, em especial, de propinas e desvios da PDVSA e suas controladas. Entre os clientes de Krull estão nada menos que três enteados de Maduro. Conforme a investigação, os filhos da primeira-dama Cília Flores teriam embolsado em torno de US$ 184 milhões com o esquema.
“A situação da Venezuela, com o enriquecimento desses grupos, demonstra mais uma vez a afinidade profunda entre as formas contemporâneas de socialismo e a velha tradição patrimonialista”, analisa o cientista político Fernando Schüler, professor no Insper. Ainda que considere o caso venezuelano muito mais grave, ele associa o que acontece por lá ao Brasil do lulismo.
De acordo com Schüler, houve uma confusão entre o interesse de grandes grupos empresariais associados ao Estado e determinadas posições na alta burocracia pública. A consequência disso fica clara com a operação Lava Jato. O cientista político, no entanto, ressalta que o Brasil não segue o mesmo caminho do país vizinho. “Embora houvesse quem simpatizasse, o Brasil nunca passou pelo processo de ‘bolivarianização’.”
Sobre pistolas e sobrinhos
Em 2003, Chávez completava quatro anos no Palácio de Miraflores quando a Venezuela enfrentava a paralisação dos petroleiros, um movimento organizado pela oposição na tentativa frustrada de golpe de Estado. Ao furar os bloqueios e colocar os navios de sua empresa de transporte marítimo à disposição de Chávez, o empresário Wilmer Ruperti deixou de ser um ilustre desconhecido para assumir a posição de parceiro preferencial da PDVSA. De quebra, converteu-se em multimilionário.
A proximidade de Ruperti com o ex-presidente teve suas extravagâncias. Em 2012, por exemplo, ele presenteou o governo com duas pistolas que pertenciam a Simón Bolívar no começo do século 19. As armas, fabricadas por Nicolas Nouel-Boutet – armeiro de Napoleão Bonaparte – são ornadas com detalhes em ouro e haviam sido compradas na casa de leilões Christie’s, de Nova York, por US$ 1,6 milhão. Nos últimos anos, Ruperti, que também é dono do Canal i, uma das principais redes de TV da Venezuela, viu seu império ruir pela queda nos preços do petróleo e por multas e condenações motivadas por negócios escusos. Ainda assim, jamais saiu de cena.
Seu último capítulo completou dois anos em setembro passado. Em 2016, em entrevista ao Wall Street Journal , ele confessou que pagava a defesa de dois sobrinhos do casal Maduro-Flores, condenados a 18 anos de prisão nos Estados Unidos por envolvimento com o narcotráfico. Em 2015, eles foram detidos ao articular um plano de levar 800 quilos de cocaína para os Estados Unidos. Algumas declarações pinçadas da reportagem: “Isso perturba a família presidencial”. “Estou ajudando a preservar o governo constitucional”. “Existe uma tentativa de etiquetar a Venezuela como um narcoestado”.
E as investidas contra os boliburgueses – incluindo a família Maduro – não param por aí. No dia 25 de setembro, o governo de Donald Trump aplicou sanções financeiras à primeira-dama, à vice-presidente, Delcy Rodriguez, e a dois ministros. A medida envolve o bloqueio de transações e propriedades pertencentes a eles, incluindo a apreensão de um avião privado avaliado em US$ 20 milhões. A aeronave estaria no nome de um laranja de Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Constituinte e considerado o número 2 do chavismo.
Em reportagem de 2017 , o diário digital espanhol El Independiente, estimava em US$ 700 bilhões os desfalques provocados pelos boliburgueses ao longo de 15 anos. Fonte da matéria, o deputado oposicionista Juan Guaidó citou que a Odebrecht havia embolsado US$ 30 bilhões por obras que, até então, tinham evoluído apenas 24%. “Toda essa ganância súbita, fruto da corrupção, impede que cheguem alimentos e remédios. A corrupção mata”, definiu.
Apesar de ações de combate à corrupção como aquelas empreendidas por órgãos como o Ministério Público venezuelano ou mesmo o Departamento de Justiça norte-americano, os boliburgueses seguem suas vidas cada vez mais distantes da realidade do país onde fizeram fortuna.
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