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Soldado supostamente russo faz a guarda em uma base militar de Sebastopol, na Crimeia | David Mdzinarishvili/Reuters
Soldado supostamente russo faz a guarda em uma base militar de Sebastopol, na Crimeia| Foto: David Mdzinarishvili/Reuters

Artigo

Entregar a Crimeia foi erro histórico

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional e professor do Instituto Rio Branco

Lugar de conflitos recorrentes, a simples menção da Crimeia evoca a guerra do século 19, a primeira da modernidade, pelos armamentos e táticas empregadas, além da novidade da cobertura jornalística com telégrafo e fotos.

Ao opor o império soviético a nações europeias mais o Império Otomano, sob a liderança do Reino Unido, o conflito abrangeu vastos interesses multilaterais, antecipando o que seria a Primeira Guerra Mundial. Situada ao sul da Rússia, a península da Crimeia é vital na geopolítica, elo estratégico com o Mar Negro e toda a bacia mediterrânea.

Se para efeitos históricos os russos perderam a guerra, o engenho diplomático czarista soube conservar a região sob jugo do Kremlin. O mesmo ocorreria após a queda do Muro de Berlim, no desmantelamento da União Soviética, quando a Crimeia foi entregue, de forma ambígua, como província autônoma da Ucrânia, na certeza da eterna aliança dócil a Moscou.

Com a recente rebelião de Kiev, que viu aflorar o sentimento antissoviético represado, é a Crimeia que volta de fato a provocar tensões. Espaço inegociável da Rússia renovada do eficiente Vladimir Putin, a histórica península revive sua sina de pomo da discórdia, como ponto nevrálgico de inédita crise pós-Guerra Fria. Com isso, refluem receios recônditos de terceira guerra mundial, desvanecidos pelo ocaso do socialismo ou pelo fim da história, como propôs Fukuyama.

Hoje, se a Crimeia é maciçamente pró-Rússia, isso se deve às deportações em massa do stalinismo, que pretendeu erradicar revoltas populares simplesmente trocando o povo. Porém, depositar o inegociável porto como território alheio, ainda que sob controle, foi claro erro histórico. Como tudo tem lá seus motivos, houve a falsa certeza da eterna submissão a Moscou: afinal, Kruschev era ucraniano.

A ocupação militar da Crimeia, ainda que com encabulada dissimulação, demonstra a determinação russa em garantir acesso ao mar, a colocar em xeque o direito internacional. Afinal, tecnicamente, há clara invasão territorial estrangeira, embora não seja fácil explicar em Moscou que russos são estrangeiros na Crimeia.

Estivéssemos na Guerra Fria, havia modus vivendi que reconhecia às superpotências o direito a estrepolias na vizinhança, em suas regiões de influência, como os americanos fizeram no Panamá. Porém, os tempos são outros. Enquanto a Ucrânia se mobiliza, esperando amplo apoio, os líderes europeus e sua líder tergiversam com promessas banais, bem sabendo da atual fragilidade da Europa, somadas a medos ancestrais da frente russa.

Os próximos passos deverão ser os da diplomacia, mas com a sensação preocupante de que Fukuyama estava errado e de que a história segue com seu cortejo de tragédias. Se a Crimeia traz os agouros da crueza da guerra, de Sebastopol e de Balaklava, resta a lembrança alvissareira de que por ali também está Yalta, com toda a sua simbologia de negociação e de concórdia. Foi em Yalta que se deu a famosa conferência do fim da Segunda Guerra, a reunir soviéticos e demais aliados, em busca consequente de paz e de harmonia.

  • Moradores de Stavropol, no sul da Rússia, fazem manifestação em favor da retomada da Crimeia

A Ucrânia parece caminhar a passos largos no sentido de uma divisão territorial depois de o Parlamento da Crimeia, república autônoma no sul de seu território, ter manifestado na quinta-feira o desejo de fazer parte da Rússia e convocado um referendo para o próximo dia 16. Nesta semana, deputados russos encaminharam um projeto de lei com o objetivo de facilitar uma eventual adesão da Crimeia.

INFOGRÁFICO: Conheça a Crimeia

Acredita-se que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, esteja por trás de tais desdobramentos, mas ainda não se sabe se a intenção de Moscou é realmente anexar a Crimeia ou alavancar sua posição na queda de braço com Estados Unidos e União Europeia (UE).

Em 22 de fevereiro, após três meses de protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovich de aceitar um multibilionário pacote de ajuda de Moscou e deixar de lado uma aproximação comercial com a UE, políticos pró-Bruxelas derrubaram o governo estabelecido em Kiev.

Enquanto EUA e UE saudaram a deposição de Ya­­nu­­kovich e rapidamente abraçaram o governo interino empossado pelo Parlamento, a Rússia qualificou a ação como golpe. Rapidamente, o foco das tensões voltou-se para a Crimeia, região autônoma onde a maioria da população é de etnia russa.

A convocação do referendo pelo Parlamento da Crimeia equivale quase a uma declaração de independência. Cerca de 60% da população local é de etnia russa. "Esta é a nossa resposta à desordem e à ilegalidade em Kiev", declarou o deputado Sergei Shuvainikov. "Decidiremos nós mesmos o nosso futuro."

O atual primeiro-minis­­tro da Ucrânia, Arseniy Yatse­­nyuk, antecipou que não vai reconhecer o resultado do referendo, que considera "ilegal", e disse que o governo empossado depois da deposição de Yanukovich não fará concessões em relação à Crimeia. Líderes da UE e dos EUA também contestaram o referendo.

Referendo visa dar "verniz democrático" a decisão parlamentar

Agência Estado

A consulta popular daria um verniz democrático à eventual adesão formal da Crimeia à Federação Russa, mas ainda não é possível prever como a questão irá evoluir, apesar da proximidade da votação.

Antes de chamar a consulta popular sobre a adesão à Rússia, o Parlamento da Crimeia havia convocado um referendo para 30 de março, mas a questão a ser colocada aos eleitores era se a república deveria ou não gozar de "autonomia de Estado" dentro da Ucrânia.

Na cidade portuária de Sebastopol, que dispõe de autonomia em relação ao restante da Crimeia, a câmara local decidiu também participar do referendo. De acordo com o governo da Crimeia, forças pró-Rússia controlam atualmente todos os acessos à península e isolaram todas as bases militares que ainda não se renderam.

"Estamos cansados de revoluções, praça e conflitos. Queremos viver pacificamente na Rússia", disse Igor Urbansky, morador de Simferopol, capital da Crimeia. "Só a Rússia pode nos salvar do genocídio", prosseguiu.

Viktor Gordiyenko, por sua vez, acredita que a Crimeia esteja sendo usada como um "fantoche" de Moscou. "Isso é loucura. O referendo é só uma encenação. A decisão da ocupação foi tomada de antemão", acredita.

Acordo

Atualmente, um acordo de arrendamento assinado entre Moscou e Kiev, em 1997, permite que a Frota do Mar Negro da Rússia fique instalada em Sebastopol, na região autônoma da Crimeia, até 2042. Segundo o pacto, as tropas russas não podem sair dessa região com equipamentos ou veículos militares sem a permissão das autoridades ucranianas. Todos os movimentos devem ser acertados em conformidade com Kiev.

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