Neste domingo (3), num referendo no qual oposicionistas apontaram uma grande abstenção, a população venezuelana aprovou que a ditadura de Nicolás Maduro tome medidas para anexar mais de 160 mil quilômetros quadrados de território da vizinha Guiana a oeste do rio Essequibo, que correspondem a cerca de 70% do território guianense e sobre os quais Caracas reivindica soberania desde o século 19.
As cinco perguntas da consulta tiveram mais de 90% de aprovação e indicam um caminho conflituoso: entre os pontos referendados, estão rejeitar uma sentença arbitral de Paris de 1899 que conferiu a soberania sobre a região ao Império Britânico, de quem a Guiana ainda era colônia; reconhecer apenas o Acordo de Genebra de 1966, que determinou o controle da área pelos guianenses, mas admitiu a contestação da Venezuela, como jurisprudência aceitável sobre o tema; rejeitar a arbitragem da Corte Internacional de Justiça (CIJ); e transformar a área no estado venezuelano da Guiana Essequiba.
Embora muitos tenham a impressão de que a América do Sul é uma região sem disputas militares, o subcontinente é palco de conflitos internos (como os confrontos entre o Estado colombiano e guerrilhas de esquerda, ainda em andamento) e já presenciou guerras extremamente violentas entre países, como as do Chaco e do Paraguai. O mais recente conflito entre Estados na região foi a Guerra do Cenepa, travada entre 1995 por Peru e Equador.
Vinte e oito anos depois, a sombra da guerra internacional volta a ser projetada na América do Sul. Especialistas advertem que, embora haja pouca perspectiva de vitória da ditadura venezuelana, uma invasão pode ser o próximo passo de Maduro.
O major da reserva e analista de riscos Nelson Ricardo Fernandes Silva apontou a grande desproporcionalidade de força militar entre a Venezuela e a Guiana.
“A Venezuela tem hoje forças armadas relativamente bem equipadas, se considerarmos o teatro da América do Sul, tem equipamento russo, uma série de coisas... levando em consideração que há uma alegação histórica que ele [Maduro] apresentou, tem o apoio da população, precisa chamar a atenção para outros cantos, para desviar da inflação e outros assuntos, ele consegue um clamor popular em cima do tema e a possiblidade de meter a mão numa área rica em petróleo”, disse Silva, que destacou interesses de outro ator.
“Seria fantástico para a Rússia ter outro foco de perturbação para os Estados Unidos, França e outros países. Eu acho muito factível que haja um atrito mais forte na região. Tudo se encaminha nessa direção”, afirmou o analista.
Para Igor Macedo de Lucena, economista e membro do think tank britânico Chatham House, a intenção de Maduro com a disputa, reavivada depois que a empresa americana ExxonMobil descobriu grandes reservas de petróleo no mar territorial guianense em 2015, é claramente tirar o foco de problemas internos e criar uma espécie de unidade nacional em torno de um tema, às vésperas de eleições que, se forem disputadas de forma limpa, devem tirar o chavismo do poder após mais de 24 anos.
“Dizem que não há nada melhor do que um conflito externo para apagar um problema interno”, disse Lucena.
“O questionamento é se o Maduro teria coragem e capacidade para isso [iniciar uma guerra], sabendo que o Reino Unido não vai aceitar que um país da Commonwealth seja atacado, nem que os Estados Unidos vão deixar que suas empresas que estão investindo bilhões na região sejam afetadas. Mas, da mesma forma, ninguém esperava um avanço territorial da Rússia sobre a Ucrânia”, disse o analista.
Semelhanças com Putin
Lucena apontou que algumas medidas de Maduro se assemelham às que o parceiro Vladimir Putin adotou nas duas invasões à Ucrânia: a anexação da Crimeia em 2014 e a guerra generalizada que começou em fevereiro de 2022.
Uma delas é alocação de tropas na fronteira com a Guiana, que Maduro diz oficialmente que têm apenas o objetivo de combater a mineração ilegal – da mesma forma, Moscou negou até o último momento no ano passado que os militares mobilizados perto da fronteira com a Ucrânia fossem uma ameaça ao país vizinho.
Outro ponto é “um plano acelerado para o atendimento integral da população atual e futura” da Guiana Essequiba, o que incluiria a concessão de cidadania às 125 mil pessoas que vivem no local, a maioria comunidades indígenas.
“Putin dava abertamente passaportes para quem entrasse numa administração russa na Crimeia e [os cidadãos] saíam de lá russos. Maduro pode dizer que ali [no Essequibo] há uma população grande de neovenezuelanos e ele vai lá defendê-los de um ataque do governo da Guiana, todo tipo de ideia para deturpar a opinião pública e tornar um ataque 'legítimo', quando na verdade essa ameaça não existe. É todo o enredo de uma invasão, a questão é se ele vai comprar uma briga militar que não tem a menor chance de vencer”, disse Lucena.