Como se não bastassem os problemas decorrentes da guerra e de ter de abandonar seus países, nos últimos dias, após os atentados na França, os refugiados que chegam à Europa também viram crescer a desconfiança dos cidadãos europeus em relação à sua condição ou intenções. O caso mereceu a atenção do alto comissário da ONU para Refugiados, António Guterres, que na última terça-feira (17), durante uma visita ao centro de recepção de Presevo, na Sérvia, fez questão de lembrar que “os refugiados não provocam o terrorismo, mas são frutos do terrorismo, da tirania e da guerra”.
Ele se referia à “radicalização reativa” que, aos poucos, parece estar migrando do discurso de líderes da extrema-direita – como a francesa Marine Le Pen (candidata à presidência da França com um discurso que prega o fim da “submersão do país” na torrente migratória) – para as conversas de padaria e postagens do Facebook de cidadãos comuns.
Para Guterres, o fortalecimento da retórica do “cavalo de Troia” – que vê a massa de refugiados como veículo para o terror – é parte de uma estratégia sofisticada do Estado Islâmico de colocar “cidadãos contra cidadãos, comunidades contra comunidades e países contra países dentro da União Europeia”.
A situação, avalia o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), ex-diretor do Instituto de Estudos da Segurança da União Europeia e cavaleiro da Legião de Honra da França, Álvaro Manuel Ribeiro Garcia de Vasconcelos, mostra o grau do equívoco – e de má vontade política – dos governos em relação ao tema.
“A reação da maioria dos países europeus aos refugiados, em especial da Síria, é em tudo contrária não só às suas responsabilidades internacionais, mas aos valores da própria União Europeia. Triunfou, na maioria dos casos – com exceção da Alemanha e da Suécia – uma política antirrefugiados que também é islamofóbica.”
Desde o início do ano, segundo estimativa do Alto Comissariado da ONU para refugiados (Acnur), a Europa recebeu 750 mil deslocados pela guerra, oriundos principalmente da Síria, Iraque e Afeganistão. Em 2014, foram 700 mil, e 350 mil em 2013. Essa massa – numericamente equivalente à população de Curitiba –, pressiona os governos à adoção de medidas que, em muitos casos, reforçam o discurso do medo.
“Na França, vimos Marine Le Pen elogiar as medidas de François Hollande”, observa Álvaro de Vasconcelos, lembrando que, do ponto de vista humanitário, adotar a retórica da extrema-direita é o caminho menos indicado para solucionar a crise. Em partes da Europa Central e Oriental (casos da Hungria e da Polônia), segundo ele, uma onda nacionalista está ganhando força e até afastando os países dos valores que subscreveram quando aderiram à União Europeia.
“No campo geopolítico, os líderes europeus deveriam federalizar a política de refugiados– considerando que têm uma fronteira exterior comum – e fazer de tudo para resolver os conflitos que deram início ao deslocamento dessas populações.”
É possível afirmar que as associações entre os refugiados e o terror também esbarram na antropológica questão do “outro” – o estranho, o diferente, aquele com quem, em uma primeira leitura, não se compartilha uma visão de mundo.
No contexto das relações entre europeus cristãos ou secularizados e europeus muçulmanos, esse “outro” é bem anterior ao Estado Islâmico, e está ligado a problemas bem conhecidos dos governos. Para Álvaro de Vasconcelos, a exclusão social, o sentimento de humilhação, a inadaptação do sistema escolar à multiculturalidade, assim como as prisões superlotadas e sem política de recuperação, são algumas das razões da radicalização.
“A esses fatores internos europeus de radicalização vêm apenas juntar-se a Guerra do Oriente Médio, primeiro a do Iraque e agora a da Síria. Esses jovens encontram agora, nas guerras do Oriente Médio, uma causa, e no caso do massacre de Paris, uma organização que os enquadra e arma.”