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Uma mulher gesticula na frente de policiais que montam guarda, enquanto pessoas comemoram a renúncia do então presidente interino peruano Manuel Merino, em 15 de novembro de 2020| Foto: Luka GONZALES/AFP

Sem dúvida alguma, 2020 foi marcado pela pandemia do novo coronavírus. A crise de saúde foi destaque durante o ano inteiro. Mais de 80 milhões foram infectados, 1,7 milhão de pessoas morreram, milhões ficaram desempregados, milhões passaram fome, ficaram sem estudar. Por outro lado, o desenvolvimento de vacinas contra a doença em tempo recorde foi uma vitória da ciência que merece ser celebrada em meio a um ano trágico. Mas apesar da relevância do tema, este texto não é sobre a pandemia. É sobre os importantes acontecimentos internacionais que ocorreram à sombra dela e continuarão repercutindo em 2021.

A seguir, confira a primeira parte desta retrospectiva de 2020.

Duas ameaças e uma guerra

Quando as notícias sobre uma nova doença misteriosa em Wuhan, na China, começaram, timidamente, a ganhar a atenção da imprensa, o mundo estava mais preocupado com a ameaça de uma nova guerra no Oriente Médio. Em três de janeiro, os Estados Unidos lançaram um bombardeio que matou o comandante das Forças Quds – unidade especial da Guarda Revolucionária do Irã –, o general Qasem Soleimani. Em comunicado, o Departamento de Defesa dos EUA justificou o bombardeio dizendo que Soleimani planejava atacar diplomatas e funcionários americanos "no Iraque e por toda a região". Prontamente, o Irã prometeu uma “vingança severa”. Em sete de janeiro, duas bases aéreas que abrigam soldados dos EUA e tropas aliados no Iraque foram atingidas por foguetes lançados pela Guarda Revolucionária Iraniana. Um dia depois, o Irã abateu um avião de passageiros – por engano, segundo autoridades do país –, matando 176 pessoas que estavam a bordo.

Manifestantes gritam slogans contra os Estados Unidos e Israel enquanto seguram cartazes com a imagem do comandante iraniano Qasem Soleimani, morto em um ataque aéreo dos EUA no Iraque | Foto: Tauseef MUSTAFA/AFP
Manifestantes gritam slogans contra os Estados Unidos e Israel enquanto seguram cartazes com a imagem do comandante iraniano Qasem Soleimani, morto em um ataque aéreo dos EUA no Iraque | Foto: Tauseef MUSTAFA/AFP| AFP

A animosidade entre os países continua alta, principalmente após a morte do principal cientista nuclear iraniano, mas as tensões não evoluíram para uma guerra, como muitos temiam. Mesmo assim, os Estados Unidos estão se preparando para possíveis ataques do Irã e de grupos terroristas aliados do regime no aniversário de um ano da morte de Soleimani.

Outra ameaça de guerra veio das vizinhas China e Índia. As duas potências nucleares protagonizaram uma crise internacional por desentendimentos sobre as fronteiras entre países. O problema vem de décadas, mas um confronto em um dos pontos disputados, em uma região do Himalaia, em 15 de junho, resultou na morte de 20 soldados indianos e um número desconhecido de baixas do lado chinês. Como os países têm um acordo para não usar armas de fogo na fronteira, a luta entre os militares foi travada com paus, pedras e socos. Este foi o maior confronto entre China e Índia em décadas, com um grande envio de tropas para a região disputada. As tensões diminuíram após conversas em nível diplomático e militar.

Soldados da Força de Segurança da Fronteira Indiana (BSF) guardam uma rodovia que leva a Leh, na fronteira com a China, em Gagangir em 17 de junho de 2020 | Foto: Tauseef MUSTAFA/AFP
Soldados da Força de Segurança da Fronteira Indiana (BSF) guardam uma rodovia que leva a Leh, na fronteira com a China, em Gagangir em 17 de junho de 2020 | Foto: Tauseef MUSTAFA/AFP| AFP

Alguns meses depois, bem longe dali, no Cáucaso, Armênia e Azerbaijão travaram uma guerra sangrenta que terminou com a morte de mais de 5 mil soldados. O confronto, que durou cerca de seis semanas, ocorreu, primariamente, pelo controle da região montanhosa de Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, perto da fronteira com a Armênia. Em novembro, os dois lados firmaram um acordo de fim das hostilidades, mediado pela Rússia, que enviou dois mil de seus homens para as áreas disputadas.

Explosão no Líbano

Uma visão geral mostra os silos de grãos danificados do porto de Beirute e seus arredores em 5 de agosto de 2020, um dia depois que uma poderosa explosão destruiu parte da capital do Líbano | Foto: AFP
Uma visão geral mostra os silos de grãos danificados do porto de Beirute e seus arredores em 5 de agosto de 2020, um dia depois que uma poderosa explosão destruiu parte da capital do Líbano | Foto: AFP| AFP

Outro trágico acontecimento que chamou a atenção do mundo em 2020 foi a assustadora explosão no porto de Beirute, capital do Líbano, em 4 de agosto. Praticamente metade da cidade sofreu com o impacto da explosão de 2,7 mil toneladas de nitrato de amônia, depois que um incêndio atingiu o galpão onde o material estava armazenado há seis anos, em condições precárias. O incidente, que poderia ter sido evitado caso as autoridades do país tivessem dado atenção ao problema, aprofundou a crise política no país, houve uma troca de governo, mas a desconfiança da população em relação aos políticos ainda é alta.

Abraham Accords no Oriente Médio e RCEP na Ásia

Importantes acordos foram fechados em 2020, com repercussões que vão muito além da pandemia. Destaca-se a normalização das relações de Israel com vários países árabes por meio dos Abraham Accords. Por meio desta iniciativa do governo de Donald Trump para a paz no Oriente Médio, cinco nações reconheceram Israel e iniciaram relações diplomáticas com o país judaico de setembro até agora: Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão, Marrocos e Butão. Com isso, os EUA conseguem consolidar uma frente no Oriente Médio contra um inimigo em comum: o Irã. Israel diminui o estado de beligerância contra si, amplia sua influência econômica na região e enfraquece o apoio de fato à causa palestina.

Autoridades chinesas assinam o RCEP durante videoconferência com os demais países membros do acordo comercial.
Autoridades chinesas assinam o RCEP durante videoconferência com os demais países membros do acordo comercial.| Nhac Nguyen/AFP

Outro importante acordo firmado neste ano foi a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), um dos maiores acordos de livre-comércio do mundo, assinado por China, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Indonésia, Filipinas e outros países do Sudeste Asiático – um grupo de países que representa cerca de um terço da população e da economia mundiais. Nesse acordo, o importante aspecto geopolítico é que a China assume um papel econômico ainda mais relevante na região, preenchendo um vácuo deixado pelos EUA, depois que Trump anunciou a saída do país do TPP (Parceria Trans-Pacífica) para proteger postos de trabalho nos EUA, sob a bandeira do “America First”. Além disso, paradoxalmente, coloca a China, uma ditadura comunista, em uma posição de liderança na defesa do livre comércio.

Acontecimentos na América Latina

Este foi um ano tão dramático para a América do Sul quanto 2019. Em uma região devastada pela Covid-19, houve eleições, crises internas e até destituição de um presidente. Confira um resumo dos fatos mais importantes:

Nova Constituição no Chile. Em resposta aos protestos de 2019, os chilenos foram às urnas em outubro e decidiram, com uma ampla margem de votos, que o país precisa de uma nova Carta Magna. A atual, escrita durante a ditadura do general Augusto Pinochet, vai ser substituída por um novo documento que será formulado por uma Assembleia Constituinte. O próximo passo deste processo ocorrerá em abril de 2021, quando os chilenos escolherão os membros desta Constituinte.

Trocas de presidente do Peru. Em uma semana de novembro, o país conseguiu a façanha de ter três presidentes. Martín Vizcarra foi destituído do cargo em 9 de novembro após um processo de juízo político (similar ao impeachment). Em seu lugar, assumiu o presidente do legislativo peruano, Manuel Merino, do partido de oposição Ação Popular. Mas o governo interino não durou uma semana. No dia 15, após protestos massivos e duas mortes, Merino renunciou. O Congresso se reuniu no dia seguinte para escolher um novo presidente e elegeu o deputado Francisco Rafael Sagasti. O agravamento da crise política afetou consideravelmente a habilidade do governo em navegar pela pandemia. Além de ser o país da região com mais mortes por milhão por causa da Covid-19 (1.133), o Peru está tendo dificuldades em negociar a compra de doses de vacina contra a doença.

Socialistas voltam ao poder na Bolívia. Luis Arce, afilhado político do ex-presidente Evo Morales, foi eleito presidente da Bolívia em outubro, colocando um fim a uma crise institucional que vinha se desenrolando desde 2016 e teve seu ápice na fuga de Morales do país e a proclamação da conservadora Jeanine Añez como presidente interina. Com isso, o partido Movimiento al Socialismo (MAS) voltou ao poder, Morales regressou à Bolívia e o processo de fraude eleitoral contra ele foi arquivado. Enquanto Morales reaquece sua base eleitoral para as eleições de governador do ano que vem, ainda não está claro qual é o poder de influência do padrinho no governo de Arce. O presidente já deu declarações enfatizando sua independência, mas não pode abrir mão do apoio político de Morales.

A relação entre Brasil e Bolívia pode mudar depois da eleição de Luis Arce?
Luis Arce, do Movimento ao Socialismo, consolida vitória na eleição presidencial da Bolívia| RONALDO SCHEMIDT/AFP

Ditadores se fortalecem, na Venezuela e na Nicarágua. 2020 começou e terminou mal para Juan Guaidó, presidente interino da Venezuela e líder da oposição no país. No início do ano, foi impedido pelas forças de segurança do ditador Nicolás Maduro de entrar no prédio da Assembleia Nacional para participar de uma sessão na qual seria reeleito para a presidência do legislativo venezuelano. Como resultado, as instituições chavistas passaram a reconhecer o deputado Luis Parra, um desertor do grupo político de Guaidó que passou a negociar com a ditadura, como o líder do legislativo venezuelano – o que não ocorreu em nível internacional. Ao longo do ano, a pandemia impediu que Guaidó e seus aliados pudessem retomar o ativismo nas ruas. Nomes importantes da oposição, como Maria Corina Machado, da direita, e o ex-candidato a presidente Henrique Capriles, expuseram publicamente seu descontentamento com a liderança e estratégia de Guaidó.

Já em dezembro, a ditadura de Nicolás Maduro declarou vitória nas eleições parlamentares, consideradas ilegítimas e sem garantias pela comunidade democrática internacional. Uma nova assembleia nacional, composta 90% por candidatos do partido de Maduro, deve tomar posse em 5 de janeiro. Por mais que esta legislatura não seja reconhecida internacionalmente, o fim do mandato de Guaidó enfraquece ainda mais sua posição como presidente interino do país e líder da oposição, dentro e fora da Venezuela. O apoio do presidente eleito dos EUA, Joe Biden, a Guaidó ainda é incerto e especula-se que ele possa tentar um diálogo direto com o ditador.

Na Nicarágua, Daniel Ortega, que também tem controle sobre o legislativo e o judiciário do país, acabou de aprovar uma nova lei que diminuirá a participação da oposição nas eleições presidenciais do ano que vem, inabilitando a cargos eletivos qualquer cidadão que a ditadura considere "traidor da Pátria". Neste ano, Ortega também aprovou por decreto um pacote de leis contra crimes cibernéticos que aumenta o controle do governo sobre o que é publicado na internet, enquanto o legislativo aprovou a chamada “lei Putin”, que está sendo usada para perseguir organizações não governamentais e os adversários do regime.

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