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Geopolítica

Além da pandemia: uma retrospectiva da política internacional em 2020 (parte 2)

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ARQUIVO: Trump e Xi Jinping, presidentes de EUA e China, respectivamente, durante encontro de líderes em Pequim (Foto: NICOLAS ASFOURI/ AFP)

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Sem dúvida alguma, 2020 foi marcado pela pandemia do novo coronavírus. A crise de saúde foi destaque durante o ano inteiro. Mais de 80 milhões foram infectados, 1,7 milhão de pessoas morreram, milhões ficaram desempregados, milhões passaram fome, ficaram sem estudar. Por outro lado, o desenvolvimento de vacinas contra a doença em tempo recorde foi uma vitória da ciência que merece ser celebrada em meio a um ano trágico. Mas apesar da relevância do tema, este texto não é sobre a pandemia. É sobre os importantes acontecimentos internacionais que ocorreram à sombra dela e continuarão repercutindo em 2021.

A seguir, confira a segunda parte desta retrospectiva de 2020. A primeira está disponível aqui.

Mudança de governo nos EUA

A eleição americana deste ano foi uma das mais importantes da história do país. Logo depois que Donald Trump se livrou de um impeachment, os EUA foram duramente atingidos pela pandemia de Covid-19, o que fez vários estados alterarem regras eleitorais permitindo uma maior votação antecipada, por correio ou presencial. A crise sanitária aprofundou a polarização entre republicanos e democratas. Também contribuíram para esta divisão os protestos raciais que começaram por causa da morte do afro-americano George Floyd por um policial branco - e que em diversas ocasiões acabaram em tumultos violentos, pessoas feridas, saques e até mortes. A crise econômica, consequência da pandemia, corroeu os ganhos econômicos que o país tinha construído na última década e deu a Trump um fardo pesado para carregar em seu último ano de presidência. Ele, contudo, obteve uma vitória no fim de seu governo ao nomear mais uma juíza - a terceira em quatro anos - para a Suprema Corte. Com Amy Coney Barrett, os conservadores somam seis votos entre os nove membros do máximo tribunal de justiça americano.

Nas urnas, o resultado disso tudo foi uma troca de governo. Uma vitória do democrata Joe Biden, como previam as pesquisas, mas muito mais apertada do que se imaginava. Trump foi derrotado, mas se consagrou como o segundo presidente mais votado na história, com 74 milhões de votos.

kamala bidenKamala Harris e Joe Biden foram escolhidos como "Pessoa do Ano" pela Time em 2020 (Foto: Jim WATSON/AFP)

Outros exemplos de como a população americana está dividida vêm dos resultados eleitorais no legislativo: a Câmara continuará sendo controlada pelos democratas nos próximos dois anos, mas eles terão uma maioria menor do que a atual legislatura; no Senado, os republicanos têm a vantagem, mas nada ainda está definido, porque duas cadeiras estão sendo disputadas em segundo turno no estado da Geórgia.

Outra particularidade da eleição deste ano é que o presidente em exercício ainda não reconheceu a vitória do adversário nas urnas. Trump está tentando provar na justiça que as eleições foram amplamente fraudadas e que milhares de votos precisam ser anulados. Não é de hoje que ocorrem denúncias de fraude nas eleições americanas, mas o grande volume de votos por correio e a virada que eles proporcionaram a Biden em estados-chave foram - e continuam sendo - motivo de reclamação dos republicanos. Esses questionamentos legais, rejeitados pela justiça, só devem parar em 6 de janeiro, quando o Congresso se reunirá para confirmar a vitória de Biden. Contudo, a retórica de que a eleição de 2020 foi fraudada continuará fazendo parte do repertório republicano nos próximos anos, assim como as alegações dos democratas sobre um conluio de Trump com a Rússia para vencer as eleições de 2016 marcaram praticamente todo o governo do atual presidente.

Apesar disso, a transição presidencial nos EUA seguiu em frente. Líderes mundiais reconheceram a vitória de Biden - alguns esperaram a votação no Colégio Eleitoral em 14 de dezembro para cumprimentá-lo, como o presidente Jair Bolsonaro - e até mesmo lideranças republicanas admitiram a derrota do partido na eleição presidencial.

Biden e sua vice, Kamala Harris, já começaram a anunciar os nomes que vão integrar o comando da Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021. Junto com as pautas de campanha, esses nomes começam a consolidar a imagem de um governo americano progressista nas pautas de costumes e mais intervencionista, tanto na economia como nas ações militares estrangeiras.

Putin no poder até 2036? Depois de 2020, é possível

O presidente russo, Vladimir Putin. (Foto: Mikhail Klimentyev/AFP)

Em julho, os russos votaram a favor da reforma constitucional que vai dar a oportunidade para o presidente Vladimir Putin manter-se no poder por mais dois mandatos – ou seja, até 2036. Reeleito em 2018, o atual mandato dele termina em 2024, mas ele comanda o país desde há 20 anos. As mudanças aprovadas em referendo, cujo resultado está sob suspeita de manipulação de resultados, também tornaram a Constituição russa muito mais conservadora, com menções à Deus, respeito à igreja ortodoxa, criação patriótica e definição do casamento como a união entre um homem e uma mulher, proibindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Rússia.

Repressão brutal na Bielorrússia

Na vizinha da Rússia, o ditador Alexander Lukashenko manipulou as eleições, se declarou vencedor e, quando a população saiu às ruas para protestar, ele ordenou que a polícia reprimisse os manifestantes de forma brutal. Apesar dos vários relatos de tortura e mortes, Lukashenko continua no poder. Os principais opositores foram forçados ao exílio. Recentemente, o país viu mais uma onda de manifestações depois que um professor foi morto sob custódia da polícia. Em 20 de dezembro, pelo menos 100 pessoas foram presas em protestos contra o ditador.

Confronto entre policiais e estudantes universitários em Minsk, capital da Bielorrússia. Foto de 26 de outubro de 2020. (Foto: AFP)

O fim da autonomia de Hong Kong

Em um esforço para acabar com os protestos por democracia em Hong Kong, a China aprovou uma lei de segurança nacional para a cidade que determina que "separatismo, subversão, terrorismo e secessão" são crimes puníveis com a prisão perpétua. Contudo, a legislação não especifica os crimes, deixando o texto aberto à interpretação das autoridades. Na prática, a lei passa por cima da Constituição de Hong Kong, acaba com a autonomia judicial da cidade e torna muito mais perigoso fazer qualquer tipo de oposição à ditadura comunista da China. Pequim instalou uma agência em Hong Kong, responsável por garantir a aplicação da lei e que é vista como um órgão de repressão do regime chinês.

Outros exemplos do fim das liberdades em Hong Kong: livros de parlamentares pró-democracia e ativistas foram removidos das bibliotecas públicas; o hino de protesto “Glória a Hong Kong” foi banido nas escolas.

Manifestantes são detidos em Hong Kong no feriado do Dia Nacional da China, em 1° de outubro de 2020. (Foto: AFP)

Como resultado, os Estados Unidos revogaram o status comercial especial concedido a Hong Kong, alegando riscos de que a região desviasse tecnologia americana de ponta às autoridades da China. De acordo com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a lei de segurança imposta por Pequim compromete as liberdades civis em Hong Kong.

A oposição da cidade sofreu outro baque depois que a líder executiva da cidade, Carrie Lam, adiou em um ano as eleições parlamentares que ocorreriam em setembro de 2020. Desde os protestos de 2019, a oposição vinha ganhando apoio da população e tinha a possibilidade de chegar perto de conquistar a maioria no parlamento local. Com medo de ver suas pautas bloqueadas por um legislativo opositor, Pequim voltou a agir, aprovando uma lei que prevê a demissão imediata de legisladores de Hong Kong que "deixarem de cumprir os requisitos legais de manter a Lei Básica e honrar o juramento de fidelidade à Região Administrativa Especial de Hong Kong". Quatro legisladores foram destituídos do cargo logo em seguida. Todos os parlamentares pró-democracia renunciaram, em solidariedade. Candidatos da oposição também foram impedidos de concorrer nas eleições legislativas, também sob o mesmo argumento de terem violado as disposições da nova lei de segurança nacional.

Repressão em Xinjiang

2020 também foi o ano em que o mundo descobriu mais coisas sobre a máquina de repressão do regime comunista chinês às minorias étnicas e religiosas. O caso mais emblemático e perturbador é a situação dos uigures na província de Xinjiang.

Um levantamento publicado neste ano revelou que as autoridades chinesas usam malwares e hackers a serviço do governo para invadir os celulares de uigures, ganhando acesso remoto ao microfone dos aparelhos, acesso para gravar chamadas ou exportar fotos, localizações e conversas em aplicativos de mensagens. Quem tem aplicativos não autorizados pelo partido instalados no celular está sujeito à detenção.

Bandeiras chinesas são vistas em uma estrada que leva a uma instalação onde, acredita-se, há um campo de reeducação onde minorias étnicas muçulmanas estão detidas, nos arredores de Hotan, na região de Xinjiang, noroeste da China. (Foto: GREG BAKER/AFP)

Outro estudo mostrou que a China está usando métodos de controle de natalidade forçados e até abortos para diminuir a população uigur na província de Xinjiang. Algumas mulheres, após sair do país, descobrem que estão estéreis.

Imagens de satélite mostraram que, ao contrário do que as autoridades chinesas alegaram, mais campos de “reeducação” estão sendo construídos na província. Um vídeo gravado por um uigur detido e publicado na internet revelou como é a vida em um destes campos que, apesar do nome alternativo, funcionam como verdadeiras prisões.

Já no fim do ano, um relatório feito pelo Centro de Política Global afirmou que há “fortes evidências de que a produção da maior parte do algodão de Xinjiang envolve um programa estatal coercitivo voltado para grupos étnicos minoritários”. As táticas usadas para coagir pastores e fazendeiros a deixarem suas terras e trabalharem na colheita manual do algodão são semelhantes às usadas no Tibet para enviar milhares de uigures para empregos na indústria chinesa. Tanto tibetanos como uigures são submetidos a um “treinamento vocacional centralizado” pelo Estado, onde devem “fortalecer a fraca disciplina de trabalho” e diminuir “a influência negativa da religião”. Os treinamentos são feitos de acordo com as necessidades das empresas contratantes. Uigures e tibetanos são constantemente monitorados por funcionários do governo – durante o treinamento e até no trabalho. Às vezes, eles são enviados para outras localidades e províncias.

Além de condenações internacionais e algumas sanções por parte dos EUA, pouco foi feito globalmente para pressionar a China a parar com a repressão das minorias no país.

Tensões entre EUA e China

Janeiro começou com um acordo comercial que prometia melhorar as relações entre China e Estados Unidos, mas a pandemia de Covid-19 e outras questões – como a repressão aos uigures e ao movimento pró-democracia em Hong Kong, roubo de propriedade intelectual americana e espionagem – azedaram de vez o trato entre as duas maiores economias do mundo.

““Se não agirmos agora, no final das contas, o [Partido Comunista Chinês] irá erodir nossas liberdades e subverter a ordem baseada em regras que nossas sociedades livres trabalharam tanto para construir”, disse o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em um discurso na biblioteca californiana de Richard Nixon, o presidente que reabriu os laços com Pequim durante a guerra fria. “O velho paradigma de engajamento cego com a China simplesmente não dá certo. Não devemos continuar. Não devemos voltar a ele”.

Além das tensões econômicas, tecnológicas e de direitos humanos, em 2020 se intensificaram as provocações militares entre os países, especialmente no Mar do Sul da China, com grandes exercícios militares e envio de embarcações e equipamentos de guerra à região. Neste ano, os EUA também endureceram sua postura em relação às disputas no Mar do Sul da China, afirmando que a reivindicação do governo chinês pelo controle de recursos offshore em boa parte da região é "completamente ilegal". Outro ponto de interesse que pode ser o estopim de um conflito entre as potências é Taiwan, cada vez mais ameaçada por uma invasão chinesa, que enxerga o território não como um país, mas como uma de suas províncias. Os EUA, um parceiro informal que fornece armas a Taiwan, está comprometido a ajudar o país a se defender contra um ataque chinês.

Todas estas tensões levaram ao pior momento da relação entre os países nas últimas cinco décadas. E até agora não há sinais de que isso vá melhorar com a gestão do próximo presidente americano, Joe Biden, que também promete uma mão firme contra o regime comunista chinês.

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