A Rússia anunciou nesta terça-feira (15) que suas unidades estavam patrulhando entre as forças militares turcas e sírias perto da cidade de Manbij, no norte da Síria, em um sinal de que Moscou, um importante aliado do governo sírio, estava se movendo para preencher um vácuo de segurança depois que as tropas americanas se retiraram da área.
O Ministério da Defesa da Rússia disse em comunicado que a polícia militar do noroeste de Manbij estava patrulhando "ao longo da linha de contato entre a República Árabe da Síria e a Turquia". Uma alta autoridade russa disse que Moscou está trabalhando para impedir um confronto militar entre Ancara e Damasco.
"Ninguém quer que esse tipo de conflito aconteça. É completamente inadmissível. Portanto, é claro, não permitiremos isso", disse Alexander Lavrentyev, enviado especial presidencial da Rússia para a Síria, a repórteres nos Emirados Árabes Unidos, segundo a agência Interfax.
O anúncio da Rússia ocorreu quando os Estados Unidos disseram na terça-feira que removeram suas próprias tropas de Manbij. "As forças da coalizão estão realizando uma retirada deliberada do nordeste da Síria", escreveu no Twitter o coronel Myles Caggins, porta-voz militar dos EUA. "Estamos fora de Manbij."
Operação turca
Uma ofensiva turca que começou há uma semana no norte da Síria derrubou alianças e redesenhou esferas de controle no conflito na Síria, que já dura oito anos. A ação obrigou dezenas de milhares de civis a deixarem suas terras e provocou temores de ressurgimento do grupo militante Estado Islâmico. O anúncio feito pela Rússia na terça-feira revelou outra consequência: a retirada dos Estados Unidos de pelo menos parte da Síria, com a transferência de influência de uma superpotência para outra.
A "passagem de tocha" foi desajeitada. As autoridades americanas disseram que "desconflitaram" com seus colegas russos quando se retiraram. Eles deixaram para trás um posto militar que indicava que a saída foi um tanto apressada, segundo vídeos postados por sorridentes soldados e jornalistas russos que visitaram o local. Os veículos e armas parecem ter sido removidos, mas um Game Boy, uma geladeira cheia de refrigerantes e o que pareciam ser algumas caixas de donuts de uma rede americana permaneceram no local.
"Vamos ver como eles viviam"
Os vídeos e imagens foram divulgados por um jornalista que viaja com as forças apoiadas pela Rússia. As publicações mostram o interior da base abandonada pelos EUA em Manbij.
"Bom dia!", Oleg Blokhin diz em um vídeo publicado em redes sociais pela manhã. "Estamos em uma base dos EUA em Manbij. Ontem de manhã eles estavam aqui e hoje nós estamos aqui. Vamos ver como eles viviam aqui, o que eles faziam e o que é tudo isso".
O vídeo, que foi verificado independentemente pela organização de notícias Storyful, mostra várias barracas sob redes de camuflagem e uma torre de rádio que corresponde a fotografias anteriores da base americana. Em outro vídeo gravado uma hora depois, Blokhin mostrou um portão motorizado para veículos que continha inscrições visíveis em inglês.
Mais tarde, Blokhin publicou mais fotografias que mostram quadros brancos com uma bandeira russa e mensagens fazendo referência a Donald Trump em uma mistura de inglês e russo. Não foi possível determinar quem escreveu as mensagens.
Acordo entre curdos e Bashar al-Assad
Uma mudança mais consequente ocorreu um dia antes, quando os curdos sírios anunciaram que haviam firmado um acordo com o governo do ditador Bashar al-Assad - um ato de desespero que encerrou um experimento curdo de autogoverno, assinado enquanto os militares turcos se aproximavam.
O acordo permitiria que as forças do governo sírio assumissem a segurança em algumas áreas de fronteira, segundo autoridades curdas sírias, que disseram que seu governo manteria o controle das instituições locais. Na terça-feira, a televisão estatal síria informou que tropas do governo entraram em Manbij. Foi exibido um vídeo que alegadamente mostrava moradores comemorando a chegada das forças sírias no centro da cidade.
Temores de ressurgimento do Estado Islâmico
Ancara disse que sua operação militar visa limpar a fronteira das forças curdas sírias com ligações com militantes curdos na Turquia e repatriar refugiados sírios para o país.
Os Estados Unidos e outros aliados ocidentais da Turquia condenaram a operação, alertando que ela pode levar ao ressurgimento do Estado Islâmico. O governo Trump pediu na segunda-feira ao presidente turco Recep Tayyip Erdogan a implementação de um cessar-fogo imediato e impôs sanções aos ministérios de defesa e energia da Turquia, bem como a três altos funcionários turcos.
O presidente dos EUA, Donald Trump, foi duramente criticado, inclusive por alguns de seus próprios aliados republicanos, por retirar tropas dos EUA e deixar as Forças Democráticas da Síria (FDS), aliadas dos EUA, enfrentar os militares turcos. O vice-presidente americano Pence anunciou segunda-feira que lideraria uma delegação à Turquia no "futuro imediato", em um esforço para acabar com a violência.
Erdogan não deu nenhuma indicação de que está disposto a interromper a ofensiva. "Em breve, protegeremos a região de Manbij até a fronteira com o Iraque", disse ele na terça-feira durante uma visita ao Azerbaijão, referindo-se a uma extensão de 370 quilômetros.
A ofensiva levantou questões sobre o futuro das cidades ao longo da fronteira. Na terça-feira, porém, o foco estava em Manbij, uma cidade a 27 quilômetros da fronteira com a Turquia que tem sido um ponto focal das ansiedades de segurança da Turquia, bem como de seu relacionamento conturbado com os Estados Unidos.
A Turquia por muito tempo exigiu que os Estados Unidos expulsassem as FDS de Manbij e reclamou que um acordo firmado com Washington para remover os combatentes não estava sendo implementado.
A Turquia e os Estados Unidos concordaram em dezembro em um plano para as FDS se retirarem de Manbij, cerca de 40 quilômetros a oeste do rio Eufrates, e um roteiro previa patrulhas conjuntas entre os EUA e a Turquia na cidade. As autoridades turcas veem os combatentes curdos na Síria como terroristas por causa de seus vínculos com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que travou uma guerra de décadas por autonomia dentro da Turquia.
Meses de negociações sobre Manbij foram interrompidos quando a Turquia iniciou sua ofensiva militar na semana passada.
Interesses da Rússia
Moscou, que tem laços amigáveis com os governos sírio e turco, apareceu em uma posição única para impedir que os dois exércitos entrassem em confronto em torno de Manbij e em outras partes da Síria. Ao mesmo tempo, a Rússia deixou claro que se opõe à operação militar da Turquia. Lavrentyev, enviado da Rússia para a Síria, disse na terça-feira que a ofensiva na Síria era "inaceitável".
"Nunca favorecemos e nunca apoiamos a ideia de enviar, por exemplo, unidades turcas para lá, sem mencionar a oposição armada síria", disse ele, referindo-se aos grupos rebeldes apoiados pela Turquia, segundo a Interfax.
Os principais interesses da Rússia na Síria incluem "montar uma defesa bem-sucedida da sua aliada Síria em Damasco, restaurar os poderes e a soberania de Damasco em todo o território da Síria e, em seguida, reconciliar o governo sírio com seu arredores regional e internacional", disse Sam Heller, analista sênior do International Crisis Group. O esforço da Rússia para normalizar as relações da Síria incluiu a promoção de um acordo de 20 anos entre Ancara e Damasco com o objetivo de atender às preocupações de segurança da Turquia - um acordo que poderia levar à restauração das relações entre os dois governos.
Mas os planos da Turquia de controlar uma faixa do território sírio, por um período indeterminado, pareciam colidir com os objetivos da Rússia. E, apesar do anúncio de Moscou de esforços de manutenção da paz, os combates em torno de Manbij continuaram, segundo vários relatos.
Uma autoridade curda disse na terça-feira que confrontos dispersos ocorreram fora de Manbij e que disparos de artilharia da Turquia atingiram a cidade. O Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, disse na terça-feira que suas forças "começaram a libertar aldeias" em torno de Manbij um dia antes, mas não entraram.
A Turquia disse na terça-feira que dois de seus soldados foram mortos e outros oito ficaram feridos como resultado de disparos de morteiros e artilharia por "terroristas" em Manbij, referindo-se às FDS.
As tropas do governo sírio estavam espalhadas principalmente pelas margens de Manbij, mas os combatentes curdos ainda controlavam a cidade, segundo Abu Musafir, membro do Conselho Tribal de Manbij. A maioria dos residentes árabes étnicos "estava empolgada com a operação militar liderada pela Turquia e pelo Exército Nacional Sírio", disse ele, enquanto ao mesmo tempo se preocupava com o retorno do exército sírio.
Expulsos da região
As batalhas na Síria durante a semana passada afetaram duramente os civis. A Organização das Nações Unidas (ONU) disse que cerca de 160.000 pessoas, incluindo 70.000 crianças, foram deslocadas desde que os combates no nordeste da Síria aumentaram há quase uma semana. O governo curdo disse na terça-feira que cerca de 275.000 pessoas deslocadas internamente estão na região.
O Crescente Vermelho Curdo disse na segunda-feira que grupos de ajuda internacional retiraram suas equipes internacionais do nordeste, deixando campos para pessoas deslocadas com "apoio extremamente limitado".
Do outro lado da fronteira, no Iraque, na terça-feira, curdos sírios exaustos disseram ter pago traficantes para tirá-los de lá. Trazendo poucas posses - muitas vezes não mais do que o conteúdo de uma bolsa - eles andaram durante horas no escuro para depois fazerem caminhadas penosas até os postos de controle, com a aparência cansada e atordoada.
"Passei tantos anos assistindo à tragédia dos refugiados no noticiário. Nunca pensei que eu pudesse ser um deles", disse Rafat, 45 anos, que chegou na segunda-feira ao campo de refugiados de Domiz. "Minhas pernas doem, minhas panturrilhas doem. Estamos todos exaustos."
Embora a maioria previsse a ofensiva, a sua rapidez e o seu alcance foram um choque.
"Estávamos prontos para ficar em nossas casas. Realmente pensamos que tudo se acalmaria", disse Hevin Mohammed Hamcho, 29 anos e grávida de oito meses, que fez a viagem a partir da cidade fronteiriça síria de Ras al-Ayn. "Pensamos que os americanos nos protegeriam, mas eles simplesmente recuaram tão rapidamente. Confiamos neles, e isso nos deixou sem nada".
Uma família, que não tinha dinheiro para pagar aos traficantes, disse que eles ajeitaram as malas em duas motos e dirigiram o mais rápido que puderam através da fronteira. "Os peshmerga estavam atirando contra nós", disse Rasheed, 24 anos, referindo-se às forças de segurança curdas no Iraque. "Seguramos firme e continuamos", disse ele.
Deixe sua opinião