Como aliados, a Venezuela sai barato para a Rússia. Mas o retorno potencial do investimento de Moscou poderia ser inestimável.
Em troca de empréstimos modestos e ajudas financeiras na última década, a Rússia agora possui partes significativas de pelo menos cinco campos de petróleo na Venezuela, que detém as maiores reservas do mundo, além de 30 anos de produção futura de dois campos de gás natural do Caribe.
A Venezuela também transferiu mais de 49,9% da Citgo, sua subsidiária nos Estados Unidos – incluindo três refinarias da Gulf Coast e uma rede de oleodutos em todo o país – como garantia para a estatal russa Rosneft pelo empréstimo de US$ 1,5 bilhão em dinheiro desesperadamente necessário.
Conselheiros russos estão dentro do governo venezuelano, ajudando a dirigir o curso das tentativas do ditador Nicolás Maduro de tirar seu governo da falência. Eles inclusive ajudaram a orquestrar a introdução de uma nova moeda digital, o Petro, para manter os pagamentos de petróleo fluindo, evitando sanções dos EUA sobre as transações em dólar do país.
A ainda formidável força de defesa da Venezuela, outrora um cliente exclusivo dos EUA, está agora equipada com armas, tanques e aviões russos, financiados com entregas de petróleo pré-pago a clientes russos. Maduro ridicularizou, em 2017, a ameaça pública do presidente Donald Trump de usar os militares norte-americanos para derrubá-lo, dizendo que a Venezuela, com ajuda russa, havia se transformado em uma "fortaleza" defensiva.
Sob o governo do presidente Vladimir Putin, a Rússia se restabeleceu como um importante participante no Oriente Médio, um agente de poder na Ásia e um fornecedor global de armas cada vez mais sofisticadas. Tornando-se o patrono da Venezuela – enquanto devora seus recursos – Putin não só cutucou os Estados Unidos; internamente ele construiu uma reputação autoproclamada como o homem que está devolvendo à Rússia o status de superpotência que ela perdeu com a queda da União Soviética.
Para a Rússia, o estabelecimento de um posto político avançado no Hemisfério Ocidental é "uma vitória estratégica", disse Eric Farnsworth, vice-presidente do Conselho das Américas e da Sociedade das Américas.
"Não acho que a Rússia se importe com a sobrevivência do regime de Maduro. Ele é um meio para um fim. O objetivo é projetar poder, acabar com as sanções que o Ocidente impôs e causar dificuldades para os Estados Unidos. Se, no final das contas, eles tiverem um parceiro não confiável... mesmo se perderem alguns bilhões de dólares, talvez esteja tudo bem".
No início de dezembro, dois bombardeiros russos de longo alcance e com capacidade nuclear chegaram sob o céu ensolarado no Aeroporto Internacional de Maiquetia, nos arredores de Caracas, recebidos por oficiais militares da Venezuela que saudaram e apertaram as mãos dos pilotos. Os russos depois participaram de exercícios conjuntos.
"Isso vamos fazer com nossos amigos, porque temos amigos no mundo que defendem relações respeitosas e equilibradas", disse o ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino.
Embora pelo menos uma das duas viagens anteriores dos bombardeiros estratégicos russos à Venezuela, em 2008 e 2013, tenha levado os caças da OTAN a atravessar o Atlântico em uma demonstração de força, a visita mais recente desencadeou apenas uma briga diplomática. O secretário de Estado, Mike Pompeo, declarou que os vôos são pouco mais do que um "desperdício de recursos públicos" por "dois governos corruptos".
O porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, chamou as declarações de Pompeo de "inaceitáveis" e disse que "provavelmente não é muito apropriado que um país faça tais declarações quando metade de seu orçamento de defesa pode alimentar toda a África".
Uma conta que pode sair cara para a Rússia
A retórica de Trump sobre comércio, imigração e combate aos narcóticos, juntamente com o desinteresse geral de sua administração em outros aspectos da região, deixaram um vazio no hemisfério que a Rússia procurou preencher.
Depois da recente cúpula do Grupo dos 20 em Buenos Aires, na presença de Trump e Putin, foi o presidente russo, criticado por potências ocidentais na reunião por causa da apreensão de embarcações ucranianas, que ficou para uma visita bilateral com o presidente argentino, Mauricio Macri. Os dois governos, que já haviam assinado um acordo de cooperação estratégica, redigiram um novo acordo sobre energia nuclear.
A cúpula, quase dois anos depois da presidência de Trump, foi sua primeira viagem à América Latina. Ele cancelou sua planejada viagem à Cúpula das Américas do Peru no ano passado, o principal encontro hemisférico realizado a cada três anos, bem como duas visitas agendadas à Colômbia, ostensivamente o aliado mais próximo dos Estados Unidos na América do Sul. Em todas as vezes, a Casa Branca dizia que Trump estava ocupado demais.
Enquanto Trump tinha um cronograma truncado na Argentina, o presidente russo parecia estar em toda parte.
Além de um encontro do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e do Fórum RIC (Rússia, Índia, China), Putin programou o café da manhã com a chanceler alemã, Angela Merkel; sessões bilaterais com o presidente francês Emmanuel Macron, o presidente chinês Xi Jinping e o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman; e um encontro informal com Erdogan, com quem ele conversa frequentemente sobre questões da Síria.
A China de Xi também estava ativa no G-20. Os chineses fizeram investimentos maciços e estabeleceram fortes laços comerciais na América Latina. Mas seus esforços são em grande parte econômicos. Como um grande credor venezuelano, a China demonstrou pouco interesse em acumular ativos venezuelanos ou fortalecer os laços políticos com o regime fracassado de Maduro. Na maior parte, concentrou-se em tentar reembolsar seus empréstimos.
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A Rússia, em contraste, tem repetidamente reestruturado, refinanciado ou recebido pagamentos em forma de bens ou serviços da Venezuela.
Apenas alguns dias depois da cúpula da Argentina, Maduro viajou a Moscou para se encontrar com Putin. O líder venezuelano disse que a Rússia concordou em investir US$ 5 bilhões adicionais para melhorar a produção de petróleo venezuelano – grande parte da qual vai para os próprios clientes de exportação da Rússia – e US$ 1 bilhão em mineração de ouro. Contratos separados foram assinados para abastecer a Venezuela com 600 mil toneladas de trigo russo e para modernizar e manter seu armamento de fabricação russa.
Maduro descreveu a Rússia e a Venezuela, ambas sob severas sanções dos EUA, como camaradas em uma luta contra a hegemonia americana e liderando a investida em direção a um novo "mundo multipolar".
"Naturalmente", disse Putin ao lado de Maduro, em claro aviso a Washington após as ameaças militares de Trump, "condenamos quaisquer ações que sejam claramente de natureza terrorista, qualquer tentativa de mudar a situação pela força".
Mais tarde, Peskov disse aos repórteres que "não há dúvida de que a Rússia continuará apoiando a Venezuela em um grau ou outro".
A Venezuela pode muito bem fazer a Rússia perder dinheiro. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estimou que a inflação poderia ultrapassar 1.000.000% até o final de 2018 e que sua economia sofrerá um terceiro ano consecutivo de declínio de dois dígitos no produto interno bruto (PIB).
Má gestão, corrupção e sanções debilitaram a economia venezuelana, e a indústria petrolífera está em frangalhos, fechando 2018 com exportação de 1,24 milhão de barris por dia, o nível mais baixo desde 1990, segundo a Bloomberg (a produção diária de barris é de 1,34 milhões, tendo diminuindo pela metade nos últimos cinco anos). Com alto desemprego e escassez de alimentos e remédios, milhões de venezuelanos se tornaram refugiados, fugindo das fronteiras vizinhas.
Caso o governo de Maduro caia, a dívida de Moscou, e as reivindicações russas da propriedade venezuelana de petróleo e gás, podem acabar em anos de litígios, à medida que outros credores fazem fila para o pagamento. Muitos já estão no tribunal, incluindo reclamações exigindo a venda da Citgo.
Mas, por enquanto, Moscou acredita claramente que a Venezuela vale o esforço.
"Ninguém quer ser amigo da Rússia, e é por isso que a Rússia está procurando por esses países e regimes que ainda concordam em cooperar", disse Mikhail Krutikhin, analista de petróleo, gás e energia da consultoria independente RusEnergy.
Os "amigos" da Rússia na América Latina incluem Venezuela, Nicarágua e Cuba, países aos quais o assessor de segurança nacional Trump, John Bolton, se referiu em um discurso no mês passado como a "troika da tirania".
Em uma coletiva de imprensa em 12 de dezembro, Maduro disse que Bolton foi encarregado pela Casa Branca de "organizar meu assassinato" e derrubar o governo venezuelano, acusações que ele havia feito anteriormente. A Venezuela, segundo ele, contra-atacaria com o auxílio de “países amigáveis”.
Em resposta, Robert Palladino, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, disse: "Continuaremos considerando todas as medidas diplomáticas e econômicas que impõem custos aos funcionários do regime corrupto e apoiando os esforços do povo venezuelano para restaurar a democracia e a liberdade em seu país".
As fases do relacionamento
A relação Rússia-Venezuela vem crescendo há mais de uma década. O que começou como uma transação comercial tornou-se um movimento geoestratégico para Putin, que vê um longo jogo para ganhar uma posição mais forte em relação ao suprimento global de energia, mesmo que isso imponha uma participação política na América Latina.
Os primeiros laços foram solidificados sob Hugo Chávez, o revolucionário oficial do exército que se tornou presidente em 1999. Parte de uma maré de esquerda que estava varrendo a América Latina na época, Chávez se descreveu como um antiimperialista e marxista e rapidamente se propôs a estabelecer novas políticas sociais, controlar indústrias-chave e deslocar a elite dominante tradicional da Venezuela.
Com os preços do petróleo subindo e as relações com os Estados Unidos se deteriorando, Chávez voltou-se para Moscou, inicialmente para comprar armas. Entre 2006 e a morte de Chávez em 2013, a Venezuela comprou quase US$ 4 bilhões em equipamentos militares, tornando-se por muitos daqueles anos o segundo ou terceiro maior cliente de Moscou no mundo, segundo dados compilados pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo.
Pelo menos inicialmente, a Venezuela tinha dinheiro para fazer pagamentos de suas compras, que incluíam caças Sukhoi e um número estimado de 5.000 sistemas portáteis de defesa aérea. "A hegemonia dos ianques acabou", disse Chávez em 2008, quando os dois países realizaram exercícios conjuntos no ar e no mar.
Chávez fez frequentes viagens a Moscou, visitando Putin quando o líder russo serviu como primeiro-ministro até que ele retomou a presidência em 2012. Mas grande parte do relacionamento foi administrada por Igor Sechin, presidente-executivo da Rosneft que também serviu como vice-primeiro-ministro de Putin.
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Moisés Naím, um ilustre membro do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, decano da principal escola de negócios e ministro do comércio da Venezuela durante a era pré-Chávez, descreveu o relacionamento em vários estágios.
Depois da primeira etapa, disse ele, quando a Venezuela estava entre os "melhores clientes da indústria de armas russa", a Rússia descobriu que estava ficando mais difícil de cobrar dívidas de Caracas e as compras se transformaram em empréstimos. "Isso mudou os principais atores do relacionamento", disse Naím em uma entrevista. "Não eram mais os vendedores de armas e senhores da guerra russos, mas os financistas".
À medida que a Venezuela se esforçava para administrar sua dívida, as promissórias foram gradualmente convertidas em títulos e outros instrumentos que poderiam ser usados para adquirir ativos estatais. Os investidores aproveitaram as oportunidades para deixar sua marca em solo venezuelano, embora os resultados muitas vezes fossem decepcionantes. O magnata de alumínio russo Oleg Deripaska tentou e não conseguiu estabelecer uma grande operação de fundição. Uma fábrica que produziria anualmente dezenas de milhares de rifles Kalashnikov AK-103 na Venezuela, anunciada pelo Ministério da Defesa da Rússia em 2006, permanece inacabada.
A corrupção, os problemas trabalhistas, o esforço para continuar os programas sociais à medida que a receita caiu junto com os preços do petróleo e, finalmente, as sanções dos EUA deixaram Maduro com poucas opções logo depois que ele assumiu em 2013, após a morte de Chávez. Sem o carisma ou a sofisticação política de seu antecessor, Maduro levou a economia de mal a pior.
O petróleo, mesmo que ainda estivesse no solo, com pouca perspectiva de produção inicial, continuava sendo o principal ativo da Venezuela, e o governo de Maduro começou a usá-lo, através de acordos de produção conjunta e transferências de títulos, para financiar sua dívida e aumentar a renda nacional. Grande parte do crédito da Rússia tem sido na forma de pré-pagamento para exportações de petróleo que fornecem, entre outras instalações, uma importante refinaria russa na Índia, construída para lidar com o tipo de petróleo pesado da Venezuela.
Enquanto a China se recusou a estender mais crédito, o governo russo ficou feliz em fazê-lo, reestruturando sua dívida com a Venezuela em novembro de 2017, quando ficou claro que o governo não poderia pagar os juros. Sechin, formalmente fora do governo, mas ainda chefe da Rosneft e parte do círculo de Putin, agora controla pelo menos 13% dos negócios de energia na Venezuela. Ele visita o país com frequência, cada vez mais como senhorio em vez de colaborador.
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"Nunca sairemos e ninguém poderá nos expulsar", disse Sechin no ano passado, segundo a agência russa de notícias Tass. "Continuaremos expandindo nossa cooperação".
Mas os Estados Unidos continuam sendo o maior comprador de petróleo da Venezuela, com 45% das exportações, e, como tal, são o maior fornecedor de dinheiro para o governo de Maduro. Embora a administração Trump tenha ameaçado adicionar petróleo à sua crescente lista de sanções contra a Venezuela, essa medida fecharia as refinarias da Costa do Golfo da Citgo e o fornecimento de produtos refinados aos postos de gasolina Citgo e outros distribuidores dos EUA.
Em 2016, Caracas colocou 50,1% da Citgo como garantia para uma nova safra de títulos, permitindo que pagasse suas dívidas mais urgentes. Pouco depois de o acordo ter sido alcançado, o Banco Central do país registrou um inesperado e misterioso aporte financeiro.
Quando Russ Dallen, sócio-gerente da corretora Caracas Capital Markets, sediada na Flórida, analisou documentos judiciais em Delaware, onde a holding da Citgo está localizada, ele descobriu que a Rosneft havia fechado um acordo que injetou US$ 1,5 bilhão na Venezuela em troca de um penhor sobre os outros 49,9% da Citgo.
Com as estimativas de que a Citgo, se fosse vendida, poderia valer entre US$ 6 bilhões e US$ 9 bilhões, o acordo estava muito favorável para os russos – e, além disso, eles haviam conseguido quase metade de uma gigante do petróleo dos EUA.
"Acho que Putin e Sechin são orientados globalmente. Eles sabem que o petróleo é uma arma e uma ferramenta", disse Dallen. "Eles queriam garantir seu investimento na Venezuela e qual a melhor maneira de fazer isso do que com um ativo forte que está baseado nos EUA?"
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