Um ano atrás a Rússia anunciou com orgulho a aprovação da primeira vacina contra Covid-19 no mundo. A decisão das autoridades russas, tomada depois de apenas dois meses de testes clínicos, representou um passo decisivo para a divulgação da Sputnik V em outros países, possibilitando que o Kremlin a usasse como uma ferramenta diplomática para aumentar sua influência geopolítica.
Até agora, o principal imunizante russo foi aprovado em 69 países – embora o Brasil esteja incluído nesta lista, a Anvisa apenas autorizou a importação das doses com restrições – e está sendo usado nas campanhas de vacinação de 50 nações em quatro continentes. Contratos foram assinados com governos para o envio de centenas de milhões de doses da vacina ao exterior.
Apesar de uma certa resistência inicial sobre a eficácia do imunizante, a campanha de divulgação começou bem. Kirill Dmitriev, chefe do Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF, que financiou a Sputnik V), soube explorar o fato de que os líderes das potências ocidentais estavam mais preocupados em vacinar suas próprias populações do que em tentar disputar o mercado internacional.
Assim como as vacinas chinesas da Sinopharm e Sinovac, a Sputnik V foi apresentada como uma tábua de salvação para os países que não desenvolveram suas próprias vacinas ou não conseguiram fechar acordos com as farmacêuticas ocidentais, devido à grande demanda mundial por doses.
Para a Rússia, isso foi especialmente importante no continente europeu. O esforço coletivo da União Europeia para comprar os imunizantes foi, inicialmente, um desastre. A vacinação nos países do bloco, quando comparada às conduzidas nos Estados Unidos e no Reino Unido no primeiro trimestre de 2021, avançou muito lentamente.
Diante disso, alguns governos, como Hungria e Eslováquia, decidiram fazer negócios com os russos, enquanto outros países, como a Alemanha, também cogitaram seriamente comprar a fórmula. A chefia da UE, por sua vez, continuava defendendo que os acordos que havia fechado eram suficientes. “Jogar os estados membros da [UE] uns contra os outros é naturalmente importante para a Rússia”, lembrou Pierre Vimont, ex-diplomata francês, em entrevista à BBC News.
Como qualquer assunto envolvendo a Rússia na UE, as vacinas também geraram confusão nas arenas políticas, levando à demissão do ministro da saúde na República Tcheca e até mesmo à queda do premiê da Eslováquia.
As vacinas russas chegaram também à África, ao Oriente Médio, à Ásia e à América Latina, melhorando a imagem da Rússia internacionalmente, principalmente depois que um estudo publicado na prestigiada revista científica Lancet, em fevereiro, assegurou que a eficácia da Sputnik V era de mais de 90%. Outro fator competitivo importante da Sputnik V é que ela pode ser transportada mais facilmente.
Mas não tardou para que os problemas começassem a aparecer.
Atrasos nas entregas
Os fabricantes parecem estar enfrentando problemas com a produção do componente da segunda dose, que é diferente do da primeira dose e mais difícil de produzir. O aumento de casos de Covid-19 na Rússia e a obrigatoriedade da vacina em algumas localidades também levaram o Kremlin a priorizar a demanda interna. Como resultado, milhões de doses já compradas por países mundo afora não foram entregues ainda.
Segundo levantamento da BBC News, o Irã contratou 60 milhões de doses, sendo que cinco milhões seriam recebidas em um primeiro momento. Contudo, até agora, chegaram ao país menos de um milhão de vacinas russas.
Na África, Gana havia anunciado a compra de 3,4 milhões de Sputnik V, mas até o começo do mês passado tinha recebido apenas 20 mil doses. Situação semelhante ocorreu na Angola. O Quênia, por sua vez, cancelou a importação privada da vacina ao país, depois que o governo descobriu que as doses não estavam vindo diretamente da Rússia, mas sim de uma empresa intermediária dos Emirados Árabes Unidos, segundo reportagem investigativa do Moscow Times.
Na América Latina, a decepção foi grande. O atraso na entrega das doses fez a Guatemala reduzir pela metade, de 16 milhões para oito milhões, o contrato que tinha com o fundo russo. O dinheiro que iria para estas doses será usado na compra de imunizantes da Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson – um revés para os russos, que fazem uma campanha negativa agressiva contra esses fabricantes.
O caso argentino
Na Argentina, estima-se que milhões de pessoas aguardam pela segunda dose da Sputnik V, cujas entregas foram adiadas diversas vezes. No começo de julho, o governo de Alberto Fernández ameaçou cancelar o contrato caso as autoridades russas não enviassem as doses.
"Precisamos urgentemente de algo do Componente 2 (segunda dose). Nesse ponto, todo o contrato corre o risco de ser cancelado publicamente", escreveu uma das principais assessoras de Fernández em uma carta enviada ao fundo russo. "Compreendemos a escassez e as dificuldades de produção de alguns meses atrás. Mas agora, sete meses depois, ainda estamos muito atrasados, pois estamos começando a receber as doses de outros provedores regularmente, com cronogramas que são cumpridos", acrescentou, citando também que agora a Argentina estava apta a fechar contratos com farmacêuticas americanas.
O governo argentino tentou colocar panos quentes sobre o caso, minimizando o atrito com a Rússia, mas a carta, vazada para a imprensa, é mais um exemplo da importância das questões geopolíticas nas estratégias de vacinação dos países.
Depois do ocorrido, os argentinos finalmente conseguiram a aprovação para produção do segundo componente em uma fábrica local.
Aprovação
Atrasos também ocorreram no México, em Honduras e na Venezuela. O Brasil, por sua vez, não incorporou a Sputnik V em seu programa de imunização contra a Covid-19.
O RDIF prometeu aos países da região que colocará fim ao atraso na distribuição do imunizante contra a covid-19. "A equipe da Sputnik V confirma que, devido ao grande aumento na capacidade de produção de vacinas, os atrasos temporários na entrega do segundo componente se resolverão por completo em agosto", indicou o fundo russo à Agência Efe nesta quarta-feira (4), afirmando também que fez acordos de fabricação com 14 países, inclusive com a Índia, o que permitirá duplicar a atual capacidade de produção da Sputnik V.
Mas não são apenas os atrasos de produção que estão atrapalhando a diplomacia da vacina do Kremlin. A Sputnik V ainda não foi aprovada para uso emergencial pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nem por reguladores sanitários reconhecidos internacionalmente, como a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
Nesta quarta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, comentou sobre a espera para a aprovação do fármaco na UE: "Estamos convencidos de que quando se trata da saúde e da vida dos seres humanos, não há lugar para a política. Espero que os nossos parceiros na União Europeia tenham isto em conta", disse ao jornal russo Komsomolskaya Pravda.
Nesse contexto, porém, a Sputnik V teve uma importante vitória nesta semana: autoridades do bloco informaram que o certificado digital de vacinação de San Marino, onde a maioria da população foi imunizada com o produto russo, será aceito nos países da União Europeia como equivalentes aos emitidos por países do bloco.
A importância da Sputnik V para a imunização global contra a Covid-19 também começou a eclipsar ao passo que Estados Unidos e outras economias ocidentais passaram a estar mais ativas no mercado internacional de vacinas, seja doando vacinas a nações pobres pelo Covax ou com mais acordos entre os laboratórios e governos – exemplificado no caso da Argentina, que fechou contrato com a Pfizer recentemente.
Diante deste cenário, os analistas russos do Carnegie Endowment for International Peace Paul Stronski e Grace Kier concluíram: “A Sputnik V está provando ser outro exemplo das ambições da Rússia que excedem suas capacidades”.