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A intensificação dos confrontos entre gangues armadas na região metropolitana de Porto Príncipe, capital do Haiti, desde domingo (24), tem forçado o êxodo em massa da população e deixou 20 civis mortos somente nesta semana. A situação do país está entre os dez conflitos mais preocupantes do mundo em 2022, segundo levantamento do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês). O relatório alerta para o “alto risco de intensificar a violência de gangues em meio à instabilidade política”, agravada pelo assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 7 de julho. Analistas internacionais temem que a disputa entre gangues evolua para um conflito armado no país.
A ONU calcula que 16,5 mil haitianos estão fora de suas casas, metade deles abrigados com familiares ou amigos e a outra metade em assentamentos informais ou acampamentos. Nesta semana, mais centenas de famílias deixaram suas residências na capital e se refugiaram em escolas, casas de parentes ou passaram a viver nas ruas.
Dados da Proteção Civil mostram que uma nova onda de violência dos grupos criminosos nos últimos dias resultou no assassinato de pelo menos 20 civis, com relatos de incêndios a casas, saques e estupros. Segundo a Agência France-Presse, a polícia local informou que as mortes contabilizadas desde domingo, na zona norte de Porto Príncipe, incluem “uma família de oito” pessoas, além de “três mulheres jovens e três crianças”.
“Homens armados da gangue ‘400 Mawozo’ incendiaram minha casa e mataram vários dos meus vizinhos antes de queimar a casa deles”, contou à AFP o morador de um dos bairros violentos da zona norte da capital, que preferiu se identificar apenas por Lucien, com medo de represálias. “Estupram as mulheres e as crianças quando conseguem entrar em uma casa”, disse o haitiano, que foi obrigado a sair de sua residência para se refugiar com a mãe doente em uma praça, na terça-feira (26).
Um jovem de 20 anos, que pediu para não ser identificado, relatou que seu irmão pequeno foi atingido por uma bala perdida na perna, dentro de casa, no domingo. “Conseguimos conter o sangramento, mas não podemos nos arriscar a levá-lo para o hospital e também não temos remédios para aliviar sua dor”, afirmou à France-Presse.
Desde o começo da semana, dezenas de haitianos são vistos na praça Clercine, no bairro de Tabarre, perto da embaixada dos Estados Unidos. Eles trazem roupas em cestos, mochilas ou sacolas e preparam sua comida no meio da rua. Os deslocados fogem de confrontos entre o grupo armado 400 Mawozo e a gangue rival Chen Mechan, que lutam pelo controle do território nos bairros Croix-des-Bouquets, Croix-des-Mission, Butte Boyer e Bon Repos.
Abrigado na praça, um homem que se identificou como Woodens disse à Agência EFE que está na rua há cinco dias. "Minha casa está em cinzas. Perdi tudo. Estamos dormindo na rua como resultado desta guerra, diante da qual as autoridades nada podem fazer. Não tenho expectativas das autoridades, apenas queremos um lugar para dormir", implorou.
Semelhante é a história de Rosmine Forcilus, que fugiu de Butte Boyer com seus filhos: "A fome está nos matando, mas não quero voltar para a área. Quero ir morar em outro lugar". A mesma coisa acontece com Pierre Wilguens, que se define como "um refugiado de guerra".
Alerta
No ano passado, a Acled registrou os níveis mais altos de violência contra civis no Haiti, desde que o estudo anual começou a ser feito, em 2018. Somente em abril de 2021 (dois meses antes de um referendo constitucional, que estava marcado para junho e foi adiado em decorrência da pandemia), os sequestros aumentaram aproximadamente 250% em comparação com o mês anterior. “O aumento em sequestros por resgate pode ter resultado de gangues com o objetivo de reunir recursos financeiros para seus próprios fins ou para apoiar seus aliados políticos antes de eleições importantes, como o referendo”, analisa a Acled, que se baseia em reportagens publicadas na imprensa.
Mais de 800 pessoas foram sequestradas por gangues no Haiti, em 2021, segundo a BBC. A situação humanitária do país se agravou ainda mais com um terremoto registrado em agosto, que deixou 2 mil mortos, e com o grande fluxo de imigrantes ilegais tentando entrar nos Estados Unidos, em outubro.
No fim de março, quando a guerra na Ucrânia completava um mês e a cesta básica havia passado de US$ 20 para US$ 30, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) já alertava para a insegurança alimentar no Haiti, que afetava 45% da população, ou 4,5 milhões de pessoas. Desse total, 1,3 milhão de haitianos estavam em uma situação ainda pior, precisando de apoio emergencial. A tendência é que o cenário se agrave, com novas altas nos preços de alimentos, decorrentes sobretudo do conflito no leste europeu.
O vice-representante da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) no país, Patrick David, afirmou que 200 mil crianças haitianas estavam desnutridas em março. Ele recordou que a situação alimentar no Haiti resulta de fatores naturais como o terremoto de agosto e a falta de chuvas, combinados à deterioração da economia e à crescente insegurança na região da capital.
Medo constante
Um membro da equipe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) no Haiti, identificado apenas com o nome fictício Samuel, fez um relato para o site da ONU, neste mês, em que conta como é viver constantemente sob o medo de um sequestro. "Muitas pessoas acreditam que todos os funcionários da ONU e pessoas que trabalham para organizações internacionais são ricos, e isso gera inveja e até ódio entre aqueles que não têm as mesmas oportunidades que nós, em um país com uma taxa muito alta de desemprego", contou.
Em sua rotina em Porto Príncipe, além do cuidado com o compartilhamento de informações pessoais e com a escolha dos trajetos para o trabalho, também está a saudade diária dos dois filhos, que estudam em outra localidade e só veem os pais no fim de semana, quando é possível fazer a viagem até eles. "Caso contrário, só podemos nos comunicar por telefone, como se estivéssemos morando em outro país. O deslocamento é muito perigoso. As autoridades perderam o controle das principais rotas de transporte para o sul e leste da cidade, através de áreas como Martissant e Croix-des-Bouquets, e gângsteres estão saqueando a população, estuprando mulheres e atirando em passageiros de ônibus ou carros", detalhou.
Viajar por essas localidades, segundo Samuel, é estar preparado para se deparar com “corpos humanos, deixados à beira da estrada para serem comidos por cães”. “Duvido que os mortos em Martissant apareçam nas estatísticas oficiais de mortes”, denunciou. “O futuro do Haiti é muito incerto. É uma situação de terror total. Sinto como se estivesse em um país que está morrendo”, lamentou o funcionário da ONU.
Combustíveis
Nomeado por Moïse como primeiro-ministro, Ariel Henry assumiu interinamente o país após o assassinato do presidente. Um acordo entre facções prevê que Henry permaneça no poder até as eleições, previstas para este ano, mas ainda não marcadas. Algumas gangues exigem a renúncia do premiê, inclusive usando bloqueios à distribuição de combustíveis no país como meio de pressão.
Na segunda-feira (25), longas filas de veículos foram vistas em postos de Porto Príncipe, que há vários dias sofre com a escassez de combustíveis. O Gabinete de Monitoramento dos Programas de Ajuda ao Desenvolvimento (BMPAD, na sigla em francês) garantiu que as petrolíferas fizeram encomendas e que outras serão feitas o mais rápido possível para garantir a disponibilidade permanente dos combustíveis no país. A população criticou uma suposta tentativa de “agentes econômicos” criarem uma crise para pressionar a alta dos preços.
Como consequência da situação, o número de carros nas ruas começa a diminuir e as pessoas já temem que o preço do transporte público aumente nos próximos dias. De acordo com a Agência EFE, a empresa Sunrise Airways informou em sua conta no Twitter que, devido à escassez de combustível no aeroporto internacional de Porto Príncipe, alguns de seus voos "podem ser atrasados ou cancelados".
“O fim da crise política do Haiti parece uma perspectiva distante. A instabilidade contínua provavelmente fornecerá um terreno fértil para que a agitação e a violência das gangues continuem em 2022”, prevê a Acled.
Política de acolhida
Na terça-feira, o governo brasileiro informou que renovou até 31 de dezembro o prazo para a concessão de visto temporário e residência humanitários a haitianos. O objetivo, segundo os ministérios da Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores, é garantir “a continuidade da política de acolhida adotada pelo país desde o ano de 2012, motivada pela situação de calamidade de grande proporção e de desastre ambiental, com o agravamento da situação humanitária do país”. O governo “não afasta a possibilidade de que outras medidas possam ser adotadas pelo Estado brasileiro para proteção dos nacionais haitianos e apátridas residentes no Haiti”.