Nassir Abdulaziz Al-Nasser, alto representante da ONU para a Aliança das Civilizações, esteve no Rio para receber o título de “Doutor Honoris Causa” da Universidade Cândido Mendes. Em entrevista ao GLOBO, no sábado, ele defendeu uma reforma nas Nações Unidas que reflita os problemas atuais do mundo e mais esforços para se alcançar acordos sobre questões urgentes, em referência à falta de entendimento do Conselho de Segurança em torno da guerra síria. Nasser, que já representou o Qatar, seu país, no Conselho de Segurança, classificou o Estado Islâmico (EI) de “uma grave doença” e destacou a importância de se descobrir as motivações de grupos extremistas para se evitar ataques em outros países.
O senhor se tornou conhecido por construir uma agenda de cooperação multilateral, priorizando assuntos como paz religiosa e cultural. Quais são os principais desafios do mundo globalizado para o alcance da paz?
Eu acredito que o principal desafio é que os países se esqueceram dos princípios básicos das Nações Unidas: a ideia de evitar ações unilaterais uns contra os outros. Se os países respeitassem princípios como esse, não veríamos o caos que prevalece hoje. Nós nos desviamos da ideia do direito internacional. O que está acontecendo no mundo não é só responsabilidade dos governos. Temos que trabalhar coletivamente, incluindo sociedade civil, líderes religiosos, universidades, setor privado.
Como a cooperação internacional pode combater o terrorismo de grupos como o Estado Islâmico, que usam a religião para justificar ataques?
O que vemos hoje é o crescimento do ódio entre grupos étnicos, que matam porque pertencem a diferentes religiões e etnias. Grupos extremistas que se colocam sob disfarces religiosos não estão servindo princípios religiosos. Ataques extremistas são feitos para se atingir propósitos políticos. Não há religião que aprove brutalidade e matança. Para lidar com EI há duas formas. Lutar contra o terrorismo militarmente, que é o que já está sendo feito com a ofensiva militar, e encontrar as raízes do problema. O EI é uma grave doença que está afetando o mundo todo. Não podemos permitir que ataques similares aconteçam em outros países e que se mate pessoas inocentes em nome da fé.
As Nações Unidas têm sido criticada por sua ineficiência em lidar com conflitos. O que pode ser feito concretamente?
Muitos acusam a ONU de ser uma organização cheia de burocracias e sem fazer o trabalho que deveria. Mas não é assim que as coisas funcionam. Se não tivermos consenso, nada acontece. As grandes potências do mundo têm que dar o exemplo de resolver os conflitos por meio de leis internacionais e do princípio da segurança coletiva estabelecidos pela ONU e ratificados pelos países membros. Se os países líderes desconsideram os mecanismos de paz, não dão um bom exemplo para o resto do mundo e enfraquecem o apoio às Nações Unidas.
O Conselho de Segurança não chegou a um acordo sobre a Síria...
Falhamos em alcançar um entendimento sobre a Síria, não houve acordo entre os cinco membros permanentes. Precisamos de esforços coletivos para abordar todas as questões e se chegar a consensos. Sinto-me envergonhado como ser humano de ver a Síria caindo aos pedaços. Quantos refugiados e pessoas inocentes estão morrendo. E o mundo não está fazendo nada. Isso é inaceitável. Porque estamos só assistindo um país, uma civilização, um povo, uma cultura serem destruídos? Temos que acabar o conflito e ajudar a Síria e o povo a construírem um futuro melhor.
Qual é a importância da Aliança das Civilizações para lidar com os conflitos no mundo?
A Aliança busca por meio de seus vários programas melhorar as relações entre as culturas, combater o preconceito e construir condições culturais e de entendimento para uma paz a longo prazo. Reforçamos que a desigualdade social e econômica dentro e entre as nações contribui para a instabilidade e a desordem. A disputa entre países por recursos naturais, poder e controle político e econômico também podem se manifestar em insegurança social, cultural e religiosa e em conflitos.
Como o senhor acha que o Brasil lida com as diferenças culturais e religiosas?
O Brasil é um ótimo exemplo para o mundo em termos de unidade e diversidade. É possível ver etnias e religiões diferentes vivendo juntas e em harmonia. É um país pacífico, onde existe respeito ao outro. É um exemplo para o nosso trabalho na Aliança das Civilizações.
A ONU completa 70 anos em outubro. Como o senhor avalia a organização e o que acha que deveria mudar?
Não imagino o mundo sem as Nações Unidas. Sem a ONU, estaríamos em uma grande confusão. Mas precisamos de uma boa reforma, incluindo a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança. O mundo mudou e continuamos trabalhando com o mesmo sistema há 70 anos. Precisamos de uma reforma para fazer a instituição ser efetiva e lidar com as necessidades do mundo de hoje em termos de segurança, economia, pobreza e mudanças climáticas.
Outro assunto que tem despertado preocupação da comunidade internacional é a morte de milhares de imigrantes no Mediterrâneo. Como a Europa pode responder a esse drama humanitário?
Devemos apelar por uma resposta mais ampla da Europa e a nível internacional. Mas também devemos olhar para as causas da imigração, decorrentes da desordem no Norte da África e no Oriente Médio, onde as pessoas não se sentem seguras por causa dos conflitos. A principal tarefa da ONU deve ser unir todas as partes para buscar soluções de paz.
O senhor também já debateu várias vezes a proteção de jornalistas em conflitos armados. O que pode ser feito para protegê-los?
Profissionais da mídia estão sob crescente risco de diferentes ataques, numa violação das leis humanitárias internacionais. Sob essa lei, jornalistas em conflitos armados são classificados de civis. Atacar civis intencionalmente é considerado um crime de guerra. Muitos grupos e muitos países, no entanto, não respeitam essa norma. Poucos indivíduos são levados à justiça e responsabilizados por ações contra jornalistas. A comunidade internacional deve assegurar que os responsáveis sejam processados.
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