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A chegada do inverno europeu, em pouco mais de dois meses, coloca os estrategistas militares da Rússia e da Ucrânia em alerta. A estação costuma ser muito mais rigorosa na Europa do que em solo brasileiro, e em território ucraniano já alcançou -30°C. Mesmo antes do inverno, as chuvas de outono já comprometem as movimentações das tropas, na chamada "estação das estradas ruins", a rasputitsa. O clima e o tempo nos próximos meses serão decisivos para o destino da guerra na Ucrânia.
Em dezembro, o conflito estará prestes a completar dez meses. A invasão começou no final do último inverno no hemisfério norte. De acordo com Marcelo Suano, professor de relações internacionais e diretor do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), apesar de anunciada muito antes, a invasão à Ucrânia teria sido adiada ao máximo para evitar as temperaturas mais rigorosas. "Fica a dúvida se os russos terão capacidade de suportar essa guerra, nessa condição climática que eles evitaram", destacou o professor.
Suano apontou que o moral da tropa, a capacidade do combatente e as reservas disponíveis para atuar nesse combate são variáveis que devem ser analisadas dentro dessa condição de uma guerra que se arrasta mais do que o invasor previa e que acontecerá, em breve, sob baixas temperaturas.
O professor avaliou que, até o momento, a Ucrânia não se rendeu por perceber a falha na logística russa e concentrar sua contraofensiva nos caminhos que os russos utilizam para levar tropas, comida e equipamentos para a guerra. Essa logística pode se tornar ainda mais comprometida no inverno, expondo ainda mais as fragilidades russas.
Por outro lado, a velocidade com que a Ucrânia recuperou territórios no mês de setembro dificilmente poderia se repetir durante o inverno europeu. Os dois lados terão desvantagens.
Yohann Michel, pesquisador-analista do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), descreveu que o inverno compromete os equipamentos de guerra, que podem quebrar mais facilmente, além dos veículos apresentarem dificuldade de locomoção. Por isso, as forças armadas dos dois países do leste europeu deverão apertar o passo para alcançar seus principais objetivos antes da chegada da estação mais fria do ano.
Apesar do frio tornar os ataques mais lentos dos dois lados, a guerra não deverá perder força, conforme analisou Michel ao jornal francês Le Figaro. "A história mostra que ofensivas não faltaram em guerras durante as fases de inverno, mas se tornaram mais complicadas”, destacou o pesquisador.
Foco nas regiões-chave
Dando continuidade à estratégia que rendeu frutos durante o verão europeu, os especialistas apontam que a Ucrânia tende a buscar a reconquista de territórios, como Kharkiv (nordeste do país) e Kherson (sul).
Nos últimos dias, o presidente russo, Vladimir Putin, focou na escalada da guerra em resposta à explosão na Ponte da Crimeia, intensificando ataques por todo o país vizinho, atingindo nove regiões, até mesmo a capital, Kyiv. Mas, em breve, a Rússia deverá voltar a priorizar os oblasts que recentemente declarou anexados - Kherson, Zaporizhzhia, Luhansk e Donetsk.
Estrategicamente, as regiões-chave devem ser priorizadas pelos dois países em conflito nos dias que antecedem o inverno. Kherson, por exemplo, é a maior província ocupada e um ponto estratégico para a Crimeia. Para o general francês François Chauvancy, em entrevista ao Figaro, essa região determina o poder político dos países envolvidos, fazendo com que manter Kherson sob domínio russo seja "fundamental para que Putin permaneça no poder".
Sistema de energia é alvo de Putin
O mandatário russo declarou, no início da semana, que a escalada da guerra tinha como foco, além de centros militares, o sistema de eletricidade do país. Com a proximidade das temperaturas baixas, essa se torna mais uma ameaça e chantagem aos ucranianos que resistem à guerra.
Segundo o ministro da Energia, Herman Haluschchenko, o exército russo bombardeou, desde segunda-feira (10), 30% da infraestrutura energética ucraniana, principalmente usinas elétricas, movidas a carvão. Elas são de suma importância, pois o aquecimento coletivo na Ucrânia deve ser ativado por volta de 15 de outubro para toda a temporada de inverno.
As autoridades ucranianas pediram aos moradores que reduzam o consumo de energia, enquanto na capital vários distritos estão enfrentando cortes de energia e água.
"Pelo menos 12 instalações de energia, em oito regiões diferentes, foram visadas. Instalações que podem ser cruciais para a sobrevivência da população ucraniana, à medida que as temperaturas começam a cair e nos aproximamos do inverno. É simplesmente intolerável. Atingir diretamente a infraestrutura civil é um crime de guerra", declarou Ravina Shamdasani, porta-voz do Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos.
População ameaçada
Natacha (que prefere não divulgar o nome) é uma mulher de 41 anos que se mudou com dois filhos de Donetsk para uma vila próxima a Lviv para escapar dos ataques. No entanto, ela ouviu diversas explosões de perto nos últimos dias. "A guerra está nos alcançando e não sei como vamos passar o inverno", disse a ucraniana ao jornal Le Monde. Ela conta que, nesta semana, o filho de seis anos lamentou: "Mãe, estou com medo. Estamos sem luz".
Com a intensificação dos ataques russos aos quatro cantos da Ucrânia, mais moradores de regiões-chave se tornam "deslocados internos": mudam de cidade dentro do próprio país. A ONU estima que cerca de 6 milhões de ucranianos vivem hoje nessa condição. O maior movimento, neste momento, é rumo ao oeste.
Essa enorme quantidade de ucranianos que se sentiu obrigada a sair de casa para se proteger passará por esse frio rigoroso, com chances de haver falta de energia para aquecimento, conservação de comida e tratamento de água.
Apoio ocidental fragilizado
Nesta guerra, especialmente, existe uma preocupação a mais que surge com a proximidade do inverno. Devido às sanções ocidentais impostas aos russos e à crise energética decorrente da guerra, os países europeus que apoiam a Ucrânia sofrem, direta ou indiretamente, uma forte chantagem da Rússia. A falta de energia e os limites de consumo que devem ser consequentemente impostos pelos europeus podem comprometer a economia dos países e, consequentemente, o apoio aos ucranianos.
“O inverno vai jogar com o fator psicológico da guerra e pode pesar no apoio das pessoas ao conflito”, advertiu Édouard Jolly, investigador do Instituto de Investigação Estratégica da Escola Militar (IRSEM, na sigla em francês) e especialista em teoria dos conflitos armados ao Figaro.
O professor Marcelo Suano lembrou que Putin poderá usar o "general inverno" para cortar totalmente o gás produzido no país para a Europa, pressionando os países ocidentais que são altamente dependentes da sua importação.
"Resta saber se Putin está conseguindo manter o controle da política no seu país - e as informações que temos são muito poucas. Também é necessário que ele tenha um importador que assuma de forma expressiva esse mercado consumidor europeu e que o país apresente capacidade de mobilização para fazer a dinâmica da economia crescer mesmo sem exportar gás para a Europa", descreveu Suano.