Edifícios destruídos no centro de Homs, na Síria: em seis anos de guerra civil, Assad perpretou inúmeras atrocidades, apoiado pela máquina de Estado e uma rede de prisões por todo o país| Foto: Sergey Ponomarev/NYT

As evidências são impressionantes.

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Três toneladas de documentos do governo sírio interceptadas, fornecendo um arrepiante e extenso catálogo de crimes de guerra do Estado, estão nas mãos de uma única organização na Europa. Um fotógrafo policial sírio fugiu com fotos de mais de seis mil pessoas mortas pelas mãos do governo, muitas delas torturadas. Apenas o smartphone rompeu as barreiras da guerra: os registros de crimes são agora horríveis, imediatos, avassaladores.

Porém, seis anos após o início da guerra, essa montanha de documentação – talvez mais do que em qualquer conflito anterior – trouxe pouca justiça. Aqueles por trás da violência permanecem livres e não há nenhuma maneira imediata de exibir a maior parte das provas perante algum tribunal, em qualquer lugar.

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400 mil mortos

Mais de 400 mil pessoas foram mortas na Guerra da Síria. Metade da população foi desalojada. Grupos de direitos humanos sírios listam mais de cem mil pessoas como desaparecidas – detidas ou mortas.

Dezenas de milhares definham sob a custódia do governo, onde a tortura, a privação, a sujeira e superlotação são tão graves que uma Comissão das Nações Unidas disse que a situação se compara a um “extermínio”, um crime contra a humanidade.

Mas, até agora, há apenas um caso de crime de guerra pendente contra autoridades sírias: um processo na Espanha, por causa de um homem que morreu sob a custódia do governo.

Nenhum caso foi para o Tribunal Penal Internacional. A Síria nunca se juntou a ele, portanto o promotor não pode iniciar uma investigação por conta própria. O Conselho de Segurança da ONU poderia encaminhar um processo ao tribunal, mas a Rússia usou repetidamente seu poder de veto para proteger o país da condenação internacional. E mesmo que o conselho tomasse medidas, o presidente Bashar Assad e seus altos funcionários estão protegidos em Damasco, dificultando suas prisões, para dizer o mínimo.

Recentemente, o mundo foi sacudido por um ataque químico que matou mais de 80 pessoas.

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O governo dos EUA atribuiu o ataque às forças de Assad, com base em dados de voo e outras informações. Em resposta, o presidente Donald Trump lançou 59 mísseis Tomahawk e chamou Assad de “animal”.

Conforme Assad foi consolidando seu controle das principais cidades sírias, alguns países que há muito se opunham a ele começaram a dar sinais de uma nova disposição para aceitar seu governo como o caminho mais rápido para acabar com a guerra, encorajar os refugiados a voltar para casa e acelerar a luta contra os jihadistas. Por pior que Assad seja, argumentam alguns, a Síria seria pior sem ele.

Os opositores contra-argumentam que manter um chefe de Estado com tanto sangue nas mãos perpetua a guerra.

O ataque químico foi apenas sua mais recente atrocidade, após anos de tortura, desaparecimentos, cercos de guerra e bombardeio indiscriminado de bairros civis e hospitais. A violência irá continuar enquanto Assad e seu aparato de segurança permanecerem, dizem seus inimigos.

Essa não é uma questão abstrata de direitos humanos. Ela está no centro deste conflito e impede qualquer solução ou reconciliação. Centenas de milhares de vítimas e suas famílias precisam de justiça, remédio e a garantia de que o futuro estará livre de tais violações

Laila Alodaat advogada de direitos humanos síria na Liga Internacional Feminina por Paz e Liberdade
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“Essa não é uma questão abstrata de direitos humanos. Ela está no centro deste conflito e impede qualquer solução ou reconciliação. Centenas de milhares de vítimas e suas famílias precisam de justiça, remédio e a garantia de que o futuro estará livre de tais violações”, disse Laila Alodaat, advogada de direitos humanos síria na Liga Internacional Feminina por Paz e Liberdade.

A Guerra da Síria tem exibido atrocidades por todos os lados. Rebeldes atacaram bairros civis e os jihadistas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico promoveram bombardeios suicidas, torturaram inimigos e executaram prisioneiros, muitas vezes em vídeo.

Mas, de longe, o maior número de violações veio do governo sírio e seus aliados, dizem os investigadores, porque comandam o aparato do Estado, incluindo os militares formais, com força aérea, serviços de segurança abrangentes e redes de prisões.

O governo sírio diz que o conflito é uma conspiração internacional para destruir o país e reduz toda a oposição a um terrorismo apoiado por estrangeiros. E nega que suas forças tenham utilizado armas químicas ou cometido atrocidades.

Em uma entrevista no ano passado, Assad disse, em resposta a uma pergunta do New York Times, que todos os prisioneiros eram tratados de acordo com a lei, e desmentiu relatos de milhares de famílias que dizem que seus entes queridos desapareceram sem deixar rastro.

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“Essas são alegações. Quais são os fatos?”, disse Assad.

A revolta síria começou com detenção e tortura em março de 2011: doze rapazes foram detidos depois que um deles escreveu em um muro: “É a sua vez, doutor”, sugerindo que Assad, que já foi oftalmologista, seria o próximo líder árabe a cair. Eles foram presos, espancados, torturados e forçados a assinar confissões, disse um deles ao Times.

Conforme as manifestações se espalhavam, o mesmo acontecia com as prisões. O país já tinha uma rede bem documentada de presídios onde a tortura e as confissões forçadas eram comuns, mas ela se expandiu para o que uma comissão de inquérito da ONU e grupos de direitos humanos descreveram como uma escala industrial, com a prisão de dezenas de milhares ocorrendo a todo momento. Milhares foram executados em apenas uma das instalações, a Saydnaya, como descobriu a Anistia Internacional.

Dezenas de pessoas ao longo dos anos contaram em detalhes ao Times sobre as prisões e detenções, o desaparecimentos de seus parentes nas garras do sistema de segurança, desde o início de 2011 até abril.

Muitos dos que sofreram perderam a esperança de reparação há muito tempo.

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Os países não precisam de provas, eles já sabem o que está acontecendo

Abu Ali al-Hamwi

Um sírio que por quatro vezes foi detido e torturado por levar ajuda humanitária aos rebeldes e manifestantes feridos contou suas experiências, e então expressou seu desespero por saber que nada viria disso.

“Os países não precisam de provas, eles já sabem o que está acontecendo”, disse o homem, Abu Ali al-Hamwi, usando seu nome de guerra, porque sua mãe está na Síria, em uma área controlada pelo governo.

“Somos apenas peões em um tabuleiro de xadrez. Tenho amigas que foram detidas, estupradas, engravidaram, foram torturadas com ácido.”

Ele encolheu os ombros.

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Tenho amigas que foram detidas, estupradas, engravidaram, foram torturadas com ácido

Abu Ali al-Hamwi

“Não existe justiça. E porque não existe justiça, não há esperança”, disse ele.

Conforme a guerra se arrasta, grupos de ativistas e advogados, na Síria e em outros lugares, estão documentando as atrocidades na esperança de um dia trazer os autores à justiça.

Alguns filmaram locais recém-atacados e compilaram listas de mortos; outros são promotores de crimes de guerra experientes que começaram a montar casos contra Assad e outras autoridades do governo.

O trabalho mais sistemático é o da Comissão de Justiça e Responsabilidade Internacional, um grupo sem fins lucrativos que passou anos tentando conseguir tirar documentos oficiais da Síria.

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Financiado por governos ocidentais, ele tem agora mais de 750 mil documentos do governo sírio que contêm centenas de milhares de nomes, incluindo os da cúpula do aparato de segurança do país, de acordo com William H. Wiley, diretor executivo do grupo.

Até agora, prepararam oito casos detalhados contra integrantes do alto escalão da segurança síria e autoridades da inteligência, disse Wiley. Sete deles implicam Assad diretamente.

Mas mesmo quem trabalha com processos de crimes de guerra enfrenta grandes barreiras durante um conflito.

O caminho até o Tribunal Penal Internacional parece bloqueado e os tribunais europeus têm dificuldade de acessar o acusado.

Kevin Jon Heller, professor de Direito da SAOS na Universidade de Londres, disse que as evidências coletadas contra a Síria poderiam ser quase tão fortes que as usadas no julgamento de Nuremberg após a Segunda Guerra Mundial.

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“Para mim, o problema não é tanto o mecanismo que se pode usar para a responsabilização, mas como de fato chegar às pessoas que você deseja processar”, disse ele.