Nos últimos dias, uma imagem tomou a internet brasileira de assalto, com um mapa-múndi cortado por supostas rotas de petróleo e oferecendo uma justificativa para o maior envolvimento dos Estados Unidos na Guerra da Síria nos últimos meses: após uma eventual vitória na queda de braço com a Rússia pela influência sobre o país, o governo norte-americano poderia substituir a rota atual – que dá a volta na África, pelo Cabo da Boa Esperança – pela alegada “nova rota pela Síria”, basicamente uma linha reta desde o Mediterrâneo até a Costa Leste dos EUA. Dessa forma, seria mais fácil tirar o petróleo do Oriente Médio para satisfazer as necessidades da indústria norte-americana.
Afinal, os boatos da internet fazem algum sentido? A seguir, explicamos por que a suposta rota síria não é um objetivo verdadeiro, e quais os interesses reais de Washington na zona.
De onde vem o petróleo usado pelos americanos
O mapa compartilhado nas redes sociais acerta em uma coisa: hoje, grande parte do petróleo saído do Oriente Médio chega aos Estados Unidos – e à América do Sul – circulando o Cabo da Boa Esperança, como mostra um levantamento feito pela Universidade Northwestern.
A viagem leva em torno de três semanas. Apresentado como alternativa pelos críticos do mapa que circulou na internet brasileira, o Canal de Suez (localizado no Egito, ligando o Mediterrâneo ao Mar Vermelho) não é priorizado nessa rota por duas razões principais: pelo grande tráfego que atrasaria a viagem, já que é o caminho marítimo principal para o petróleo chegar à Europa, e pelo fato de que os maiores navios petroleiros – preferidos nas viagens transatlânticas – já não conseguem atravessá-lo atualmente.
No entanto, a premissa de que os Estados Unidos dependem do petróleo do Oriente Médio é equivocada. Argumento muito utilizado no início da Guerra do Iraque, em 2003, o interesse nas reservas de petróleo da região por parte do governo norte-americano se enfraqueceu ao longo dos últimos quinze anos, conforme novas tecnologias aumentaram a produção interna para níveis que se aproximam dos recordes históricos.
Hoje, considerando a balança de exportações e importações de petróleo e derivados por parte dos EUA, apenas 19% do que é consumido no país vem do exterior – o volume mais baixo dos últimos 50 anos, segundo dados da Administração de Informação Energética (EIA, na sigla em inglês) do governo americano.
Mais do que isso: a imensa maioria do petróleo cru e derivados vindo de terras estrangeiras sai de nações que já são parceiras dos Estados Unidos, e quase metade dele vem por terra – através de oleodutos e gasodutos – desde o Canadá e o México, que juntos são responsáveis por quase 47% das importações. No ano passado, apenas 17% desse total veio dos países do Golfo Pérsico, e a maior parte disso saiu da Arábia Saudita, maior produtora da região e com quem Washington já tem laços políticos e comerciais bem estabelecidos.
Outro parceiro importante dos EUA no mercado energético surpreende quem sustenta um discurso político simplista: mesmo em crise e com um forte tom ideológico antiamericano, a Venezuela passou a última década sendo a terceira maior exportadora de petróleo para os Estados Unidos, atrás somente dos canadenses e dos sauditas (com a produção em declínio, no ano passado o país de Nicolás Maduro caiu uma posição e foi superado pelo México). De todo modo, a importação de petróleo e derivados tem cada vez menos relevância no funcionamento da economia estadunidense.
Como os EUA reduziram sua dependência
Grande parte dos nossos equívocos sobre uma suposta escassez de petróleo nos Estados Unidos vem de uma antiga teoria criada pelo geólogo da indústria petrolífera Marion King Hubbert.
Nos anos 50, analisando as reservas conhecidas, ele previu que os EUA atingiriam o ápice da produção interna em algum ponto no início da década de 70, e a partir dali haveria um declínio continuado até a extinção do recurso – com o país dependendo cada vez mais de importações.
E, por mais de meio século, a profecia de Hubbert se confirmou: após atingir um pico de 9,63 milhões de barris de petróleo produzidos por dia em 1970, os EUA viram sua produção diminuir gradativamente nas décadas seguintes. Em 2008, no ponto mais baixo desde então, a produção já havia baixado para 4,99 milhões de barris diários.
A previsão de Hubbert e a forma como ela parecia acertada esteve por trás de grande parcela dos movimentos geopolíticos na segunda metade do século 20 – tanto por parte da Casa Branca quanto dos países que para ela exportavam.
A Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) passou a operar em 1961. Desde 1973, quando geraram sua primeira grande crise internacional ao quadruplicar o preço do barril, as nações exportadoras passaram a influenciar os preços da commodity de modo a conquistar maior poder de barganha no cenário mundial. O jogo da Opep e a crescente dependência dos Estados Unidos levou a parcerias ainda hoje questionadas, como a mantida com a dinastia saudita, e a campanhas militares que – entre outras motivações – ajudaram a evitar uma diminuição do acesso americano às reservas conhecidas no Oriente Médio, como a Guerra do Golfo (1990-91) e a Guerra do Iraque (2003-2011).
A Guerra da Síria, porém, chega em um novo momento dessa história. Hoje, sabe-se que a curva de Hubbert estava errada, por uma razão fundamental: é impossível fazer o cálculo de quando haverá o “pico” de produção enquanto existirem reservas desconhecidas. O petróleo é um recurso não-renovável, mas ainda há depósitos inexplorados e não encontrados.
Foi o que aconteceu nos Estados Unidos: o desenvolvimento de novas técnicas de escavação e o chamado fracking, o fraturamento hidráulico de rocha, permitiu a extração de óleo cru em regiões antes inviáveis dentro do território nacional. Após a baixa de 2008, os EUA passaram a última década vendo sua produção subir vertiginosamente e quase dobrar – em 2017, foram 9,32 milhões de barris por dia, números muito próximos do recorde de 1970, e a tendência é que aquela marca seja superada em breve.
O que está em jogo
Isso não quer dizer que os Estados Unidos estejam envolvidos na Síria apenas por preocupações humanitárias, nem que não existam interesses políticos e econômicos em jogo – eles são, no entanto, mais complexos do que o sugerido pelo mapa das rotas de petróleo que se vê nas redes sociais.
O general da reserva americano Wesley Clark, que chegou a ser Comandante Supremo da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no final dos anos 90, declarou que a Síria estava no mapa de possíveis intervenções dos EUA desde as primeiras semanas após o 11 de setembro de 2001, como parte do conjunto de governos que deveriam ser derrubados para assegurar o controle norte-americano sobre a região.
Hafez al-Assad, pai do atual ditador Bashar al-Assad, governou o país entre 1971 e 2000 e era aliado soviético. Seu filho, no poder desde a sua morte, manteve a fidelidade à Rússia. Temia-se ainda que os países fora da zona de influência norte-americana fossem berço de grupos terroristas.
De acordo com documentos vazados pelo Wikileaks, há indícios de operações secretas dos Estados Unidos no país desde pelo menos 2006, buscando a desestabilização do regime. Outros vazamentos sugerem que americanos e britânicos estiveram envolvidos no treinamento de forças rebeldes sírias em 2011, logo no início da atual guerra civil no país.
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Nos vários anos após o início do envolvimento norte-americano na Síria, a situação se transformou. Hoje, a disputa de poder com a Rússia envolve não só um embate pela influência no Oriente Médio propriamente dito, uma herança da Guerra Fria, mas a redução da principal carta geopolítica que Vladimir Putin guarda hoje em sua manga – a dependência energética da Europa em relação ao petróleo e derivados extraídos em território russo e de suas nações-satélite.
Na atualidade, quase 39% das importações de óleo cru feitas pela União Europeia vêm da Rússia e de outras ex-repúblicas soviéticas que permanecem na sua zona de influência, como o Azerbaijão e o Cazaquistão. Uma dependência semelhante da Europa em relação aos hidrocarbonetos russos é observada em um dos principais derivados do petróleo, o gás natural, que é importado da Rússia na mesma proporção.
Em 2009, os governos do Catar e da Turquia propuseram a construção de um longo gasoduto que atravessaria a Península Arábica e, antes de entrar na Europa, precisava cruzar o território sírio. Junto com outro gasoduto proposto ligando a Turquia e a Áustria, conhecido como Nabucco, a nova infraestrutura ajudaria a diminuir a dependência da Europa em relação aos recursos vindos da Rússia. Bashar al-Assad, porém, vetou o projeto bilionário.
Desde o início da guerra civil, o Catar tem sido o país mais envolvido do Oriente Médio no financiamento de grupos rebeldes que buscam a derrubada de Assad, com a participação norte-americana se reduzindo originalmente às ações encobertas e secretas.
Mas, em setembro de 2015, o início da intervenção militar russa em solo sírio levou o conflito a um novo patamar – cogitado por Barack Obama, o envolvimento direto dos Estados Unidos no país começou a se tornar realidade com os bombardeios a bases militares e científicas sírias ordenados durante o governo de Donald Trump, iniciados no ano passado e intensificados nas últimas semanas.
Oficialmente, os ataques respondiam ao uso de armas químicas e biológicas por parte de Assad contra a população civil, mas alguns analistas veem esses episódios como um pretexto para garantir os interesses norte-americanos na área. Interesses que existem, mas não são tão simples como os memes das redes sociais podem sugerir.
* Colaborou Juan Ortiz.