Em meio à confusão de informações que pipocaram ao longo da semana, não ficou claro se as torturas perpetradas contra prisioneiros do governo Bush tiveram importância para a operação que encontrou e apagou Osama bin Laden.
Uma reportagem no jornal The New York Times, publicada na quarta-feira, afirmou que a tortura não foi relevante na caça a Bin Laden e citou Khalid Shaikh Mohammed, que passou informação falsa depois de submetido à simulação de afogamento (waterboarding) 183 vezes.
Em editorial, o diário nova-iorquino argumentou que a tortura é "imoral, ilegal e contraproducente", citando oficiais e interrogadores segundo os quais as melhores informações partiram de prisioneiros que não foram torturados.
Na entrevista a seguir, a curitibana Luara Ferracioli, doutoranda em Filosofia Política na Australian National University, de Camberra, na Austrália, fala sobre o dilema moral envolvendo a tortura.
Formada em Relações Internacionais no Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), ela vive há cinco anos na Austrália, onde fez mestrado em Ética. Em setembro, desenvolverá pesquisa no Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Existe alguma situação que justifique o uso de tortura?
Eu não acredito em direitos absolutos, mesmo quando se fala que a pessoa tem direito a não ser torturada. Acho que é concebível haver uma situação em que a tortura será útil. Mas, quando a tortura é praticada pelo Estado, a questão fica muito mais complexa. Além de ser difícil avaliar caso a caso, ela não pode virar uma prática do Estado e acaba sendo necessário proibi-la em quase todas as situações. Se você está na área teórica, por exemplo, é fácil criar uma hipótese em que a tortura possa ser justificada. Se for um estuprador vai matar uma criança ou outra pessoa inocente e a única maneira de impedir é usando tortura, ela acaba sendo justificável. Mas quando a tortura é instrumento do Estado, fica difícil ter uma visão mais nuançada da situação, então é melhor não utilizá-la. Mesmo que ela possa dar bons resultados.
Por que a entrada do Estado complica a equação?
Não se pode conceder esse poder ao Estado porque é fácil ele virar um abuso. E como não é possível saber a priori se o aparato público vai ou não abusar desse poder, o ideal é criar uma moral forte contra o uso de tortura.
No caso do Bin Laden, a tortura se justificaria?
Esse é o dilema moral mais complicado. Existem pessoas que comparam a tortura ao estupro. Seria legítimo usar o estupro para se obter uma informação? Há uma visão segundo a qual a tortura nunca é aceitável. As pessoas que são contra a tortura dizem que é um sinal dos tempos o fato de nós estarmos discutindo a tortura como se não tivéssemos completado o processo civilizatório. Existem estudiosos muito críticos que falam isso. E existe outro campo, que é o consequencialista, que acha a tortura legítima se ela for usada para salvar vidas. É preciso ser muito cauteloso. Pode ser que os Estados Unidos tenham usado a tortura desta vez para chegar ao Bin Laden, mas, no curso das investigações, acabaram torturando 20 ou 30 pessoas inocentes... Isso é problemático, muito difícil de justificar. A não ser que você realmente ignore a ideia de que a pessoa tem uma dignidade que prevalece sobre fins coletivos. Sei que não estou respondendo se acho certo ou não porque, realmente, seria preciso analisar muito mais.
O indivíduo pode prevalecer sobre o coletivo?
Acho que chega uma hora em que é preciso preservar a dignidade da pessoa, que não se pode desconsiderá-la. Mesmo que haja consequências. A minha intuição é que, se houver meios de garantir que o governo use a tortura somente em casos excepcionais como esse do Bin Laden, até dá para justificar. Mas, sabendo que esse abuso pode ser recorrente, daí é problemático.
Nesse caso, qual é o perigo que o Estado representa?
É tênue a linha entre o Estado que protege e o Estado que fere a dignidade da pessoa. Se você vai errar, é melhor errar para proteger a dignidade e não para colocá-la em risco. Mas a tortura é um dilema moral muito forte.
Há alguma regra para se avaliar um dilema moral?
Não há um cálculo exato, matemático, para um dilema moral. Os valores morais são incomensuráveis.
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